por Roberto Goldkorn
Um dia apareceu no hall dos elevadores do meu bloco, uma tela imensa que me incomodou, mesmo antes de poder ver de perto do que se tratava. Quando me aproximei e o sensor de movimento acendeu a luz, vi que era a reprodução em forma de quebra cabeça de uma ilustração famosa: A Torre de Babel.
Acho que todos conhecem, pelo menos por alto, a história/conceito da famosa Torre que foi vista pelos profetas como um exemplo da arrogância dos homens em ousar construir algo tão alto que alcançasse os céus, onde supostamente habita Deus.
Como naturalmente Deus não queria ser incomodado, decretou que houvesse confusão de línguas entre os construtores. Assim sem se entenderem e por ainda não ter sido inventado o tradutor instantâneo do Google, o resultado foi a ruína. O resultado pictórico é de uma construção parcialmente arruinada, um cenário de devastação. Como diria um amigo carioca: “sinixtro”.
Entre as lâminas arquétipos do Tarô, os autores escolheram esse pictograma para representar a pior carta, a mais temida, pelo menos por mim, que está associada à destruição, ruína, resultado natural do mix de arrogância e ignorância em construir algo sobre bases totalmente frágeis, e pretender que a construção seja firme e duradoura.
Pedi em vão ao administrador que retirasse a tela de lá, explicando que uma ilustração tão carregada de significado negativo, associada a tantos subtemas, todos ruins, não iria produzir resultados bons num prédio de 13 andares, no qual cada morador era obrigado a encarar a imagem fatídica todos os dias, ao sair ou voltar para casa. Perguntei a ele se tinha conhecimento do significado da imagem, ele disse que alguém lhe falou algo sobre Deus e a Bíblia. Desisti. Nossa comunicação estava obviamente atrapalhada por ruídos momentaneamente insuperáveis.
Mas por que esse tema é tão forte e tão temido (pelo menos por mim)?
Em primeiro lugar, porque nos fala de um velho conhecido: o medo. É claro que Deus nunca temeu que, através de uma construção, os homens, ainda em carne e osso, chegassem até ele, esse temor é humano.
É o mesmo medo que esteve presente em cada canto das grandes religiões de matriz judaico/cristã de que a humanidade perdesse seus “freios”. Por isso, o terror milenar, a insistência em que Deus deve ser antes de tudo temido. O medo é uma poderosa arma de controle. Até os bandidos que assaltam desarmados – só no “sapo”- sabem disso.
Porém o mais importante, a mensagem poderosa que emerge de uma visão aprofundada da Torre de Babel, é a catástrofe da não comunicação. Por que a Torre desmoronou, no final das contas? Porque os seus construtores começaram a falar línguas diferentes e não se entendiam!
Falar línguas diferentes. Você já viu esse filme? Quando um casal que se ama, começa a falar línguas diferentes, por exemplo: Ele decide parar de comer carne vermelha e ela não entende por que deve abrir mão de seu churrasco de fim de semana. Ou… ela acredita que precisamos separar e reciclar o lixo, e ele acha que isso não vai resolver o problema do mundo.
Isso é a Torre em sua versão personalizada e intransferível. Mas podemos abrir a lente e colocar essa “babel” numa empresa, onde o presidente resolve que precisa enxugar a empresa o tal do downsizing, mas os acionistas acreditam que ao contrário precisam contratar, porque uma retomada do crescimento do país está chegando e eles precisam estar preparados com os melhores quadros para não serem pegos de surpresa. Visões diferentes levam a linguagens diferentes e vice-versa.
Babel visível e perigosa
Mas é no embate entre religiões que lutam por hegemonia, que essa babel se torna mais visível e perigosa. Se o debate fosse e ficasse apenas no âmbito da rinha de conceitos, o desentendimento ficaria restrito ao cenário dos macacos gritadores que, cada um no seu galho, na densa floresta grita para marcar seu território, mas não passa disso. O problema é que cada grupo quer construir a sua “casa de ver Deus”, no quintal do outro. Tem chance de dar certo? Nenhuma. Não há uma letra sequer na linguagem de cada grupo que possa ser entendida pelo outro(s) grupo(s).
Voltamos ao início, o fator medo. Quando você acredita que está fazendo alguma coisa que possa magoar ou contrariar Deus, o medo da punição é a consequência natural. Mas existe o reverso dessa moeda: é quando você acredita que está fazendo exatamente tudo que é a vontade de Deus, e por isso, não só não tem medo, como ainda por cima se esvazia do ego e se torna o veículo através do qual Deus está agindo.
Foi por isso que o cristianismo prosperou no começo, mesmo diante de tantas e tão avassaladoras adversidades. Havia uma linguagem comum, uma união patrocinada por essa linguagem e essa união, todos falando as mesmas palavras e as entendendo, não poderiam ser derrotados, como não foram. Mas naturalmente nenhuma linguagem consegue ser globalmente hegemônica. Assim o planeta se transforma numa grande Torre de Babel, que abriga bilhões de torrinhas de incomunicabilidade/destruição em seu bojo.
No fundo os grandes líderes sabem disso e sabem também que a única forma de sobrevivermos, não só em nossos casamentos e empresas, é falarmos uma linguagem comum. Por isso, que a Igreja se diz católica – quer dizer universal – essa era a pretensão.
Grandes conquistadores, de César a Gengis Khan, tentaram unificar o mundo sob a mesma bandeira, os mesmos códigos, a mesma linguagem. Era essa também a pretensão dos líderes nazistas: conquistar o mundo para que uma era de ouro se instalasse, sem dissenções, sem ruídos na comunicação, todos estendendo a mão para o alto saudando Heil Hitler, como no Império Romano fizeram com o Ave Cesar.
O que conseguiram com essa miopia foi criar mais destruição e fortificar ainda mais as torres dos “outros”.
Lembro-me de um caso, que me foi contado pelo presidente e dono de uma grande empesa do ramo editorial. A empresa havia crescido muito nos últimos dez anos e cresceu também sua estrutura burocrática, vulgo administrativa. Ele me contou, rindo, que acabou descobrindo que dois departamentos da empresa contrataram uma auditoria externa (gringa) caríssima, para fazer exatamente o mesmo trabalho. Como os departamentos não “conversavam”, cada um fez tudo dentro de seus próprios muros. E lá se foram vinte mil dólares jogados fora e muita confusão (valores de 1994). Obviamente a empresa não resistiu e foi comprada (quem sabe por um grupo que falava a mesma língua).
Se a “Torre” é um símbolo antigo e persistente, dos perigos que nos espreitam, sempre que não conseguimos nos comunicar, também nos mostra os perigos dos grupos que resolvem ser Deus em seu trabalho de punir e arrasar os “pretensiosos” que a ele se opõem. Por isso os radicais escolheram destruir as “Torres” gêmeas em NY, pelo seu alto valor emblemático.
Por qualquer ângulo que se olhe a Torre, ela não nos mostra nada de positivo, nenhuma lição construtiva pode advir da torre destruída pela “justiça divina” diante da estupidez dos homens.
No saguão de um condomínio, o que a imagem sinistra pode produzir é mais desentendimento, mais choque de egos, com prejuízo para toda a pequena comunidade que ali habita. Imaginem uma sala de reunião de condomínio com uma imagem dessas dominando a parede branca. Aí entra um dos mais caros conceitos da Medicina da Habitação, que nos orienta a tomar cuidados extras cada vez que colocamos obras de arte em nossas casas, elas certamente vão emanar para as pessoas que ali frequentam seus significados primários, secundários, terciários etc.
Uma lição, porém, pode emergir dessa sombra emblemática: comunicação é tudo. Como dizia o Chacrinha: “Quem não se comunica, se trumbica”.
Se o medo é um dos alimentadores da incomunicabilidade, podemos deduzir que o seu oposto, o amor, pode ser o mais poderoso lubrificante da comunicação/cooperação, que vai construir a nossa casa segura e acolhedora.