Alienação significa perda de posse de um bem, de um afeto ou de capacidades intelectivas; compreendendo-se o último sentido como perturbação mental, passível de interdição. Mas… como se comporta uma pessoa alienada?:
Muitas pessoas questionam o caráter social da filosofia clínica. Diante dos problemas enfrentados pela sociedade contemporânea, não seria a clínica filosófica uma forma de utilização da filosofia para alienar o ser humano? Ou ainda para justificar e fundamentar posicionamentos individualistas e egoístas, tão presentes na sociedade contemporânea?
Ouvi de um filósofo clínico que, na maior parte das vezes, o trabalho em clínica consiste em promover a alienação. Tal fala espantou-me, melhor, indignou-me. Pergunto-me: como um filósofo pode, deliberadamente, assumir o papel de promotor da alienação, posto ser papel da filosofia desmascará-la, colocá-la a nu para que a apropriação de saberes nos permita ao menos algum grau de liberdade?
Compreendamos um pouco melhor a questão, observando alguns dos significados do termo alienação.
Em seu sentido comum, alienação significa perda de posse de um bem, de um afeto ou de capacidades intelectivas; compreendendo-se o último sentido como perturbação mental, passível de interdição.
Caro leitor, você procuraria um profissional para perder a posse de um bem, de um afeto, de suas capacidades mentais? Para tornar-se incapaz de decidir por si mesmo?
Filosofia: autonomia do pensamento
A filosofia clínica não é um oráculo que conduz a pessoa a um fim, que lhe retira a autonomia do pensamento. Ao contrário, seu objetivo é auxiliar a pessoa a tomar para si a condução de sua existência, a ter consciência de si e do mundo que habita para melhor situar-se e lidar com as circunstâncias que se colocam diante dela. Ao menos foi assim que compreendi e que trabalho em meu consultório desde 1998. Enquanto, no sentido comum, alienação pode significar a diminuição ou incapacidade dos indivíduos em pensar e agir por si mesmos, a filosofia consiste em autonomia de pensamento (Cf. AIUB, 2010).
O significado mais comum para alienação é deixar de ser autônomo, o que pode ser compreendido como deixar de ser dono de si mesmo, ser escravo ou propriedade de alguém, ser incapaz de decidir por si mesmo. É preciso considerar que, por vezes, a alienação é provocada por drogas, por medicamentos, por ideias que aceitamos como verdadeiras sem examiná-las e permitimos que guiem nossas vidas.
É certo que há situações em que os medicamentos nos trazem um alívio para que possamos ter disposição para analisar e compreender a situação em que nos encontramos; outras vezes têm o papel de gerar o distanciamento de si, para evitar um sofrimento maior. Mas, repito, não trabalhamos com medicamentos ou curas. Aquele que busca esse tipo de tratamento, procurará um médico e não um filósofo. Contudo, se alguém for a um consultório de filosofia clínica buscando tais caminhos, terá seu objetivo frustrado, porque o trabalho do filósofo clínico consiste, exatamente, em examinar a gênese das questões, a história dos problemas; consiste em olhar para aquilo que habitualmente não olhamos, em questionar o óbvio, para compreender sua construção e sua relevância nos contextos em que se vive.
Hegel: conceito de alienação
Hegel, em seu livro Fenomenologia do Espírito, aponta a alienação como o movimento através do qual a consciência se exterioriza, se objetifica na natureza e na história como negação de si mesma; neste processo, a consciência retorna para si mesma como autoconsciência. Objetificar-se para perceber-se como totalidade. Ainda que ficássemos com o conceito hegeliano de alienação, esta não seria um objetivo em si mesma, mas parte de um processo dialético que permitiria ampliar a consciência, percebendo-se como totalidade. Desta forma, não caberia considerar a alienação como objetivo da clínica.
Ainda assim, para Marx, Hegel confundiu a objetificação – ou seja, exteriorizar-se na natureza – com alienação, que significa, para Marx, tornar-se estranho a si até não se reconhecer mais. Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos, destaca essa distinção, mostrando que o produto do trabalho não apenas se transforma em objeto (objetificação), mas ganha uma existência própria, independentemente do trabalhador, tornando-se estranho a ele. Além disso, o próprio trabalho torna-se estranho ao trabalhador, que não possui controle sobre ele, mas é controlado, obrigado a trabalhar.
Para Marx, o trabalho é a capacidade humana de transformar o real, de criar, de realizar-se, mas alienado do produto de seu trabalho e do próprio trabalho, o trabalhador aliena-se da espécie humana, uma vez que o trabalho deixa de ser a capacidade de realizar-se, de criar, e passa a ser apenas a fonte de subsistência. Por fim, como o trabalho alienado é fruto de uma relação de produção que tem como base a exploração do trabalho, se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, pertence a outro homem, o que constitui a alienação do homem pelo homem. Assim, no sentido proposto por Marx, a alienação é fruto da exploração do trabalho.
Nunca me ocorreu de uma pessoa procurar a clínica para tornar-se um alienado neste sentido, ou seja, para que pudesse ser expropriado do fruto de seu trabalho, para que o trabalho fosse sacrifício, mortificação. O contrário ocorre. Muitos procuram a clínica buscando libertação deste processo, buscando formas de vida onde não sejam explorados, onde não sejam expropriados nem do fruto de seu trabalho, nem do processo de criação.
Marx propõe, como saída, “o retorno do homem a si mesmo como ser social, quer dizer, verdadeiramente humano”, e isto, para ele, se dá a partir do comunismo. Para outros pensadores, o caminho de superação da alienação é outro, mas sempre há um caminho ou a busca dele. Ousaria afirmar que a filosofia é o oposto à alienação, pois nos permite uma apropriação dos saberes necessários para que nos construamos nossas vidas de modo crítico e consciente.
A consciência de si, o retorno a si mesmo como ser que vive em sociedade e interage com outros seres, como ser que coabita o planeta; a consciência de como a sociedade foi constituída, como se dão as relações, como a natureza atua e quais as possibilidades para a criação da existência não nos alienam, mas podem nos libertar, e este é, a meu ver, o objetivo da filosofia clínica: ampliar nossos graus de liberdade.
Referências bibliográficas:
AIUB, M. Como ler a Filosofia Clínica: Prática da autonomia de pensamento. São Paulo: Paulus, 2008.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.