Conheci Lauro (nome fictício para uma história real) em meu primeiro emprego na década de oitenta. Professor experiente, pessoa viajada, já tinha morado no Rio de Janeiro e escolheu mudar para São Paulo alguns anos antes. Novatas no emprego, eu e duas outras professoras, fomos bem acolhidas por ele. Passamos a sair para jantar, nos conhecendo melhor, sem julgamentos, com liberdade de se dizer o que cada um pensava. Ele nascera no Sul do país, numa cidade de pequeno para médio porte, mas preferia locais cosmopolitas para viver com mais liberdade e namorar sem restrições um homem que porventura viesse a conquistar seu coração.
A década de 80 foi particularmente um pesadelo para homens homossexuais, a AIDS começou a acometer cada vez mais homens e ceifando vidas. Os indivíduos enfrentavam uma sucessão de infecções, progressivamente mais difíceis de debelar, acompanhadas de perda de peso, fraqueza e muita, muita mesmo, discriminação social.
Os indivíduos HIV positivos, em particular os que desenvolveram a doença, eram tratados por aqueles ao redor com explicita ou disfarçada (mas perceptível) atitude de rejeição e cruel julgamento moral. Fizemos parte de um pequeno e coeso grupo de amigas do trabalho que permaneceu firme no apoio a Lauro, valorizávamos a pessoa integra que ele sempre foi, mantínhamos proximidade física e emocional. Nos doeu imensamente saber de comentários ferinos, feitos pelas costas e outros atos sutilmente cruéis. Não fora convidado para o jantar de fim de ano da escola. Mandaram para ele em casa o presente que a escola ofereceu aos demais professores e funcionários, como se o tal jantar não houvesse ocorrido. Ele soube o que ocorreu…
Passeio de carro para “ver casas bonitas por aí”
Na última vez que o vimos, após internações por meningite, pneumonia e outras mazelas, ele estava bem debilitado, mas aceitou que o levássemos para um passeio de carro para “ver casas bonitas por aí”, como nos sugeriu. Dirigi pelo belo bairro do Pacaembu, enquanto ele tirava de uma sacola de papel coisas que gostaria de nos ofertar. Ganhei dois quadrinhos e uma ilustração de livro, sem moldura. Minhas outras amigas receberam sua cota de lembranças. Sabíamos que a vida de Lauro estava por um fio, seu ato sinalizava um adeus, e talvez Lauro sequer chegasse ao novo ano que se avizinhava. Compramos um pão doce ao final do passeio, para ele degustar depois. Duvidamos que conseguiria comer sem vomitar a seguir, mas fizemos exatamente o que nos pediu.
Em 02 de janeiro Lauro morreu. Tristeza enorme para a mãe e namorado. Sentimos tristeza também, mas muito alívio. Não mais sofreria. Retornando às aulas, alguns vinham nos perguntar se ele morrera de AIDS. Decidimos dizer, sempre que perguntadas, que não sabíamos, que o que nos importava era que uma pessoa formidável, muito querida por amigos e alunos, teve a vida prematuramente encerrada. Deixaria saudade em nosso coração. Essa nossa fala, bem verdadeira, calou eventuais moralistas e fofoqueiros.
Ao buscar o nome de Lauro no Google, descobri que meu amigo tinha virado nome de rua
Décadas depois, faz pouco tempo, pensando nele e nas mudanças científicas no tratamento e prevenção da AIDS, tive o impulso de digitar o nome do meu amigo no Google. Lauro mal tivera acesso a computadores pessoais e a internet não chegou a ser conhecida por ele… Para que dar uma busca na web? Saudade, talvez. Para minha surpresa, descobri que meu amigo tinha virado nome de rua na cidade natal! Isto me avivou a ideia de que lá o julgamento preconceituoso e moralizante de uns e outros na cidade grande não impediu a homenagem urbana a este valoroso professor e afetivo amigo. No meu coração, sua memória se preservou. E no mapa urbano lá ficou ele…
Um tranco enorme
Faz dez anos que sofri um tranco enorme. Perdi a maravilhosa amiga-irmã, a mãe da minha afilhada de casamento. Deixou três jovens filhas, que amou acima de tudo, inclusive de si própria. Trabalhava incansavelmente, cuidava da família com garra de leoa, lutava até tarde da noite por ganhar o seu pão, trabalhando no computador, para dar às filhas as melhores condições possíveis. E sua saúde não pode receber os devidos cuidados. Uma infecção cardíaca deu fim à sua intensa e rica vida. Tantas pessoas haviam sido inspiradas e ajudadas por ela, suas capacidades criativa, afetiva e motivadora eram extraordinárias. Possuía Inteligência vívida, desprovida de arrogância. Senti um vazio enorme, e na medida do possível, busquei oferecer colo para as meninas, e na companhia delas e dos amigos em comum tentamos lidar com nossa condição de luto. Até hoje não há um dia em que a memória dela não me venha à mente. A dor imensa do começo transformou-se em forte saudade. Tento aplicar à minha existência o que aprendi com ela. E sinto enorme gratidão por tê-la conhecido.
Faz menos de um mês que outra amada amiga-irmã se foi, vitimada por Covid-19. Um mês de UTI e uma montanha de notícias preocupantes gradualmente nos levaram a orar, pedindo aos céus que ocorresse o melhor para ela, de certo modo era uma prece que prenunciava a morte, um desfecho que nos angustiava, mas que sabíamos ser provável. Por conta da prescrição de isolamento social, estávamos sem nos ver desde março, ela faleceu no início de junho. Ainda repercute em mim a tola ideia de um reencontro pós-quarentena, como se a morte não houvesse se interposto entre nós nesta trágica temporada.
Almoços aos domingos, festas da turma, idas ao supermercado, miudezas da vida cotidiana que não ocorrerão mais na companhia da amiga que me marcou de muitas maneiras. Ela me ensinou a orar em gratidão pela vida, me ensinou a arte da maquiagem, e muitas outras coisas. Deu exemplos de caridade e compaixão pelos menos favorecidos, era frequentemente engajada em projetos sociais, aos quais doava seu tempo e saberes. Um exemplo para nós, seus muitos amigos.
O que pude aprender sobre a dor da perda?
Ela passa. Demora muito tempo, mas passa. E ai, o que sobra? Acho que a saudade nunca vai embora. Até hoje, visitando um novo restaurante, penso que seria um local que Lauro gostaria de ter conhecido em nossa companhia… Vejo os progressos no combate à AIDS e lamento que ele não teve tempo para se beneficiar de antivirais, retrovirais e quetais.
Penso na comadre, em como ela ficaria feliz testemunhando os belos rumos que suas valorosas filhas tomaram na vida! Lá pelas cinco da tarde, e altas horas da noite, penso que era boa hora para ligar para ela e botar o papo do dia. Tanta coisa para compartilhar, conselhos a pedir…
Semana passada eu via um desses programas americanos, o Extreme Makeover, de reforma de casas para famílias necessitadas, e me passou pela cabeça comentar com minha amiga que a Covid-19 levou embora, ela curtia, se emocionava com esse show. Não há linha direta para um outro plano, se é que tal dimensão espiritual existe. Cientificamente o além me parece apenas uma bela fantasia, mas meu coração prefere acreditar em alguma forma de transcendência.
Onde me apoio?
Encontro conforto nas boas lembranças, no que cada amigo deixou como ensinamento, como exemplo para as situações que enfrento, como um conjunto de valores a serem praticados ao longo da vida. A dor da perda é imensa, mas nunca renunciaria a não ter conhecido essas pessoas maravilhosas em troca de não experienciar o sentimento melancólico do nunca mais.
A morte não é plenamente vitoriosa enquanto somos capazes de honrar a memória de quem foi. Ao nos inspirarmos nos exemplos deixados pelos amigos, e nos alimentarmos das muitas doces memórias, conseguimos até sentir o sopro da presença de quem tanta falta nos faz.