O que um motorista de ônibus de longas distâncias pode nos ensinar?

O motorista de ônibus, que viaja em alta estrada, é um dos profissionais mais degradados de que se tem notícia; entenda por quê

Existem pequenos eventos que me parecem extremamente significativos. Não exatamente por aquilo que os caracterizam, mas pelo sentido geral que indicam. Assim, podemos detectar para que direção os valores de uma determinada sociedade tendem a se deslocar somente observando pequenas alterações. É verdade que algumas pequenas alterações não significam nada. Nesse caso, o erro é do intérprete que comete o erro de extrapolar indevidamente. Confesso que não sei quando extrapolar é positivo e nos aproxima de uma boa interpretação e quando isso não acontece. Mas esse risco de errar não pode mesmo ser afastado de nada que fazemos. A tentação de arriscar é maior que a vergonha de errar feio.

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Motorista de ônibus de longas distâncias: profissão degradada

O motorista de ônibus de longas distâncias é um dos profissionais mais degradados de que se tem notícia. Isso, se considerarmos a mutação profunda pela qual passou o seu exercício profissional. É verdade que algumas condições de trabalho melhoraram, através do rodízio e do cumprimento de uma carga de trabalho limitado a um número reduzido de horas. Porém, a condição de trabalho no interior dos veículos passou por uma mutação indigna.

 Há alguns anos atrás, o motorista de ônibus ocupava um espaço integrado com os passageiros. Ele era uma espécie de porteiro e gestor da viagem. De certa forma, como a separação entre ele e os passageiros era mínima ou inexistente, ele era um líder natural da viagem, o cabeça daquele deslocamento coletivo.

 Além disso, sua posição era estratégica na medida em que sua posição no veículo implicava em um ponto de vista privilegiado. E isso é o mais importante. O leitor que possui algum conhecimento de epistemologia sabe o quanto um ponto de vista privilegiado dá acesso a coisas valiosas – como a verdade, por exemplo. De fato, ao ocupar a dianteira de um ônibus, o motorista é sempre o primeiro a ver as coisas externas.

Não apenas isso, mas a altura e a amplitude do seu olhar não podiam ser comparadas a nada – dentro ou mesmo fora do veículo. Ele simplesmente via mais e melhor que qualquer passageiro. Esse via no máximo o que o quadradinho de sua janela permitia. Mas o motorista do ônibus também via antes melhor do que qualquer outro motorista em função da altura em que viajava.

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Ver o mundo de cima

Não é sequer possível comparar a visão de um motorista de um veículo de passeio com a antiga perspectiva de um motorista de ônibus. Tratam-se de duas viagens radicalmente distintas, mesmo que realizadas em um mesmo trajeto. Ver o mundo de cima, mas não de maneira desengajada como faz um piloto de avião, é muito superior a ter a visão rastejante de quem dirige um carrinho. A visão do motorista de ônibus é entre divina e animal porque se exerce em uma altitude mediana que nem é estratosférica nem intratosférica – desculpem o neologismo.

Como se pode observar, as mudanças operadas no espaço interno e externo dos ônibus que percorrem longas distâncias remeteram o motorista para o nível do chão. Ele agora viaja embaixo, rente ao solo, rasteja pelo chão de onde nada mais pode ver que não esteja ao alcance de qualquer motorista de carrinho de final de semana. Ele foi rebaixado na sua dignidade de olhador do mundo. Além disso, ele foi isolado em um cubículo minúsculo destituído quase da luz solar que sobra para os passageiros que viajam acima de sua cabeça.

A sua dignidade foi simplesmente vendida a quem pode pagar. Ele não é mais um dirigente de veículo, ele tornou-se um operário de porão que desempenha uma atividade que não possui nada de especial. Ele tornou-se um quadrúpede arrastando-se – velozmente – pela dimensão mais baixa do planeta.

Temo que esse seja o nosso destino: sermos privados de nossas dignidades atuais (que talvez já não sejam muito invejáveis) e remetidos a uma dimensão menor da existência: trabalhar no subsolo, perder a visão do horizonte, mover-se em espaços de pouco ar e pouca luz, tornarmo-nos um vermes confortavelmente ajustados a poltronas macias e traiçoeiras que não nos permitem ver além do óbvio.

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Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie