Opioides e estimulantes: é preciso buscar urgentemente tratamento médico altamente especializado para combater os efeitos de ambas as dependências
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“Meu filho viciou-se em metadona e codeína. Fez uso abusivo por mais de um ano; contudo, apesar dos efeitos físicos da abstinência, conseguiu parar na raça… O médico dele, então, fez um diagnóstico de depressão e TDAH, e iniciou o uso de uma medicação psicoestimulante. Agora, ele não consegue trabalhar sem usar mais do que três comprimidos todas as manhãs e, se cessa o uso, tem um quadro de ansiedade de dar dó. O que pode estar ocorrendo? Como posso ajudá-lo?”
Resposta: O uso abusivo de opioides e de estimulantes pode ocorrer de diferentes formas, considerando a ordem de início de cada tipo de substância psicoativa, ou seja:
- O usuário pode iniciar o consumo de estimulantes e acabar por também abusar de opioides;
- O usuário pode abusar, de forma concomitante, tanto de opioides quanto de estimulantes;
- O usuário crônico e abusivo de opioides pode cessar o uso de opioides e começar o uso de estimulantes.
As variações individuais relacionadas às formas de administração, às quantidades das drogas utilizadas e à cronologia do consumo de ambos os tipos de substâncias são consideráveis. Já as bases neurobiológicas para o estabelecimento de um padrão de abuso e/ou de síndrome de dependência são muito semelhantes dentre as várias substâncias psicoativas, embora as suas peculiaridades devam ser levadas em consideração.
Uso de opioides seguido pelo uso de estimulantes
Aqui, neste texto, focarei no uso abusivo primário de opioides seguido pelo uso abusivo de psicoestimulantes prescritos. Ou seja, a conversa a seguir concentrar-se-á nas pessoas que iniciaram o uso de psicoestimulantes após o desenvolvimento pleno da dependência física de opioides.
De uma forma bastante simplista, os opioides agem nos seus próprios receptores os quais, por sua vez, emitem sinalizações para outros sistemas de neurotransmissores, inclusive aqueles mais amiúde associados com a recompensa cerebral (o sistema dopaminérgico, por exemplo). Já os estimulantes atuam de forma primeva sobre os sistemas de dopamina.
Existem relacionamentos claros entre os sistemas de dopamina e de opioides com implicações diretas no uso simultâneo de opioides e estimulantes. O padrão de abuso de psicoestimulantes seguido do abuso de opioides é relativamente comum principalmente entre pessoas que estiveram recebendo opioides prescritos para o tratamento de dor crônica e “perderam a mão” durante o percurso. Com efeito, o desenvolvimento da dependência física de opioides muda os mecanismos neurocomportamentais subjacentes. Isso significa que a experiência vivenciada com o uso de estimulantes naqueles com quadro estabelecido de dependência fisiológica de opioides é particularmente diferente da experiência com estimulantes antes do desenvolvimento de uma dependência de opioides.
Resumidamente, em modelos animais, um mecanismo envolvendo a atividade aumentada do receptor de dopamina D2 no circuito cerebral (conhecido como estriato-ventral mesencéfalo-talâmico) parece ocorrer em função da exposição crônica aos opioides. Isso resultaria em cérebros com uma função dopaminérgica única.
Tais alterações conformacionais em receptores de dopamina podem fazer com que substâncias agonistas da dopamina, como é o caso dos psicoestimulantes, assumam propriedades reforçadoras aprimoradas durante estados de abstinência aguda ou prolongada de opioides.
Mais especificamente, o sistema opioide é considerado o sistema de analgesia natural e está distribuído pelos sistemas nervoso central e periférico. Os opioides, como morfina, oxicodona, metadona, codeína, heroína etc, funcionam como agonistas que se ligam aos receptores opioides mu, kappa e delta (dentre outros). A força dos efeitos dos opioides convencionais (por exemplo, analgesia, euforia) está relacionada principalmente à força da atividade que o opioide usado exerce sobre o receptor mu.
É amplamente sabido que o sistema de dopamina é o principal sistema de recompensa e/ou motivação responsável por produzir euforia e por robustecer o comportamento do uso recorrente de substâncias psicoativas. Os neurônios dopaminérgicos são altamente concentrados no mesencéfalo, que é caracterizado por projeções da área tegmental ventral para o núcleo accumbens no corpo estriado (ou seja, o sistema mesolímbico) ou para o córtex pré-frontal (ou seja, o sistema mesocortical). O grau em que esse sistema é ativado geralmente corresponde ao grau de recompensa experimentado.
Embora os opioides exerçam seus efeitos primários sobre o receptor mu, estas substâncias também atuam indiretamente sobre o sistema dopaminérgico mesocorticolímbico. Os receptores opioides, em condições sem uso de quaisquer substâncias, fornecem um tônus inibitório aos neurônios dopaminérgicos.
Ao contrário, quando os opioides estão presentes ou foram usados cronicamente, estudos mostram um aumento da sinalização da dopamina dentro do núcleo accumbens e, subsequentemente, um aumento da ativação do receptor de dopamina. Acredita-se que esse mecanismo neural contribua para a resposta eufórica clássica produzida por drogas opioides.
Em contraste com os opioides, os psicoestimulantes produzem efeitos eufóricos e de reforço por ativar diretamente a sinalização dopaminérgica dentro da via de recompensa. Especificamente, eles são capazes de prolongar o tempo em que a dopamina pode exercer seu efeito sobre os receptores, impedindo que ela seja reciclada de volta para o neurônio (por exemplo, cocaína) e/ou liberando grandes quantidades de dopamina na sinapse (por exemplo, com a anfetamina ou a metanfetamina).
Evidências crescentes têm demonstrado um aumento na funcionalidade da família de receptores D2 durante a exposição crônica aos opioides. Por exemplo, ratos que se tornaram fisicamente dependentes da morfina mostraram um aumento nos níveis de resposta do receptor D2 às medicações agonistas, como é o caso dos psicoestimulantes. Essas alterações foram observadas especificamente no núcleo accumbens e estriado. Dados de camundongos geneticamente modificados fornecem informações adicionais sobre esse processo, sugerindo que o envolvimento do receptor D2 torna-se relevante apenas quando a dependência física é desenvolvida.
As evidências descritas acima identificam um papel potencial para a família de receptores D2 na expressão dos efeitos opioides e introduz a noção de que a quantidade de receptores não é o principal mecanismo pelo qual isso ocorre. Essa noção é apoiada por uma abundância de dados provenientes de estudos com animais, os quais sugerem que a exposição crônica a opioides leva à adaptações funcionais no sistema de dopamina, hipersensibilizando os receptores D2. Essa hipersensibilidade pode, por sua vez, aumentar a busca por drogas ao potencializar as respostas comportamentais à ativação dos receptores D2 ou, teoricamente, aumentar os efeitos de reforço dos agonistas D2.
Por exemplo, doses de um determinado agonista D2 que são tão baixas e que não produziriam efeitos em ratos de controle mostraram aumentar comportamentos que se assemelham à abstinência de opioides, bem como de estereotipias induzidas por estimulantes em ratos que se tornaram dependentes de opioides. Outro estudo que administrou os agonistas do receptor D2 revelou que tais estimulantes aumentaram seletivamente a atividade locomotora em ratos apenas depois que eles desenvolveram dependência física de opioides e estavam em um estado de abstinência aguda ou protraída.
Embora a maioria das assertivas realizadas durante este texto sejam baseadas em estudos experimentais (realizados com animais), é possível que indivíduos dependentes fisicamente de substâncias opioides apresentem reações exacerbadas aos psicoestimulantes, inclusive aos seus efeitos eufóricos. Dito isso, a prescrição dos psicoestimulantes nessas condições deve ser pautada no bom senso e na Medicina Baseada em Evidências.
Uso descontrolado de psicoestimulantes
Seu filho está diante, agora, de um novo problema: o descontrole diante do uso de psicoestimulantes. É necessária a busca urgente por tratamento médico altamente especializado, objetivando combater os efeitos de ambas as dependências.
Não perca tempo !!! O quadro requer cuidados intensos !!!
Abaixo, forneço interessante referência:
Strickland JC, Gipson CD, Dunn KE (2022). Dopamine Supersensitivity: A Novel Hypothesis of Opioid-Induced Neurobiological Mechanisms Underlying Opioid-Stimulant Co-use and Opioid Relapse. Frontiers in Psychiatry. doi: 10.3389/fpsyt.2022.835816