Uma das características da ciência é julgar-se capaz de avaliar as coisas de um ponto de vista especial. De fato, o método científico nos colocaria em condições de avaliar crenças de uma maneira qualificada.
Depois de um certo tempo de vida, por assim dizer, começamos a constatar que não existem soluções excelentes para os problemas. Cada boa solução resolve um problema e cria outros tantos com os quais temos de lidar mais cedo ou mais tarde. Isso apenas quer dizer que as coisas continuam a ser o que são e que cada solução é um passo adiante em uma longa série de consequências. Muitas dessas consequências são imprevisíveis, mesmo para os melhores solucionadores de problemas.
Isso não implica adotar nenhuma forma de pessimismo, mas de realismo. Nossas ações conectam-se com muitas outras em um grau de interação que se perde ao longo dos seus efeitos. Então, o que nós – os realistas – procuramos não são soluções, mas intervenções que, até onde podemos ver, trazem mais benefícios que prejuízos. Não há nada nas ações humanas que seja definitivo ou que interrompa as suas próprias consequências, de tal forma que pudéssemos falar em um final feliz. Esse último é só uma ficção tranquilizadora que gostamos de cultivar. Cada ação bem intencionada pode desandar para coisas muito maléficas – ou não. Tudo o que podemos é tentar fazer o melhor e rever aquilo que foi feito, de tal forma que possamos manter um nível de equilíbrio que tenda a garantir mais benefícios que danos.
Nossa casa está sempre em reforma, por assim dizer. Tudo precisa ser reavaliado para que possa continuar a contribuir para o bem-estar dos seres que nela vivem. Assim, mesmo coisas que parecem resolver problemas muito bem precisam ser analisadas para que os malefícios que inevitavelmente produzem sejam minimizados. Creio que já é hora de fazermos isso com uma atividade especialmente talhada para resolver problemas: a ciência.
Qual é o aspecto danoso da ciência?
É claro que não posso aqui, nessa página, pretender fazer isso. Apenas gostaria de chamar a atenção para um aspecto danoso da ciência. Uma de suas características é julgar-se capaz de avaliar as coisas de um ponto de vista especial. De fato, o método científico nos colocaria em condições de avaliar crenças de uma maneira qualificada. Coisa que outras formas de conhecimento não possuiriam e que tornariam essa atividade especialmente talhada para fornecer soluções.
O mundo são mesmo os fatos? Isso é real?
A base fundamental que permite à ciência exercer o tipo de avaliação de crenças que ela se propõe é acreditar que o mundo são os fatos. Tudo o que há para ser conhecido pode ser acessado por meio de nossos sentidos: a visão, a audição, o tato, o olfato e a degustação. No momento histórico em que a ciência tomou forma, ela teve – e de certa forma ainda tem – de expurgar para fora do mundo a ser conhecido toda a gama de fatores que não recaem nessa categoria, tudo que não são fatos ou não podem ser captados por aqueles sentidos.
Então, de saída, a ciência teve que operar um corte dentro do mundo, separando aquilo que ela elegeu para conhecer daquilo que ela entendeu que não pode ser conhecido. Quero fixar-se aqui justamente nessa separação. Se tomarmos como base as crenças de todas as pessoas, veremos que grande parte ficou de fora no universo criado pela ciência como objeto possível de conhecimento. Me refiro, entre outras coisas, a todo aspecto espiritual ou mágico do mundo. Não estou propondo aqui que esse aspecto é real. Estou apenas constatando que para resolver problemas a ciência realizou uma cisão naquilo que, então, se entendia como fazendo parte dele.
Com isso quero dizer que o método científico é uma estratégia de resolver problemas que empobreceu o mundo. Aquela cisão original tornou o mundo menor do que ela era. Um mundo menor é certamente mais fácil de controlar, além de possuir um tipo específico de problemas muito diferentes daqueles que existem em um mundo espiritualizado ou mágico.
Soluções científicas operam em um mundo reduzido
Insisto: não suponho que esse mundo mágico seja real. Me refiro à ação de seccionar as crenças das pessoas, tornando legítimas apenas algumas delas. Assim, as boas soluções científicas para problemas humanos ainda são partes daquela estratégia de somente considerar como problemas autênticos algumas das características do mundo experimentado pelos seres humanos. Trata-se, portanto, de uma história de sucesso dentro de dimensões reduzidas da experiência humana. As soluções científicas são soluções de problemas que operam no interior de um mundo que foi deliberadamente reduzido.
O que deveria nos preocupar, acredito, é saber se essas boas soluções compensam aquela cisão e, consequentemente, o empobrecimento do mundo. O que parece inevitável é saber se a ciência ainda produz soluções tão boas que compensem o empobrecimento de nossa experiência. Afinal, quando a ciência resolve um problema ela nos torna melhores ou piores? Quando ela age, nos tornamos maiores ou menores? Creio que é isso que já estamos em condições de avaliar. Mas talvez nem todos estejam preparados para essa conversa…