A Páscoa faz referência ao fato de que as coisas que estão mortas podem renascer. Aquilo que está morto em nós pode renascer? Entenda por que a Páscoa é uma oportunidade revolucionária que deve ser levada a sério.
Estamos no mês da Páscoa. Embora se trate originalmente de uma festa religiosa, creio que ela já se tornou um evento cultural. Isso porque todo mundo a considera uma data significativa. Todos a comemoram de uma maneira ou de outra, nem sempre conectados com o sentido religioso original. Até mesmo quem não crê, participa da Páscoa.
Por isso, creio que o assunto também está disponível para os filósofos. Afinal, aquilo que interessa a muita gente, deve interessar aos filósofos – se espera.
A Páscoa faz referência ao fato de que as coisas que estão mortas podem renascer. Isso não é nenhum absurdo se considerarmos o fluxo natural das coisas. Na mesma medida em que tudo morre, tudo o que morre é uma nova oportunidade para a vida. Talvez seja o fato de estarmos tão concentrados em nossas próprias vidas cotidianas que nos impeça de perceber sua finitude e sua transcendência. Finitude porque ela é temporalmente limitada. Transcendência porque ela não está desconectada do entorno e de outros processos que a sucedem.
Além desse sentido óbvio, creio que a Páscoa é a lembrança da possibilidade de que aquilo que está morto em nós possa renascer. De fato, nosso estilo de vida atual conduz à morte muito do que há em nós. Afinal, para nos tornarmos administradores de empresas devemos matar o astronauta que há em nós, para sermos professoras devemos eliminar nosso interesse pela agricultura etc. Para obtermos sucesso profissional devemos eliminar tudo aquilo que existe em nós e que tende a outras atividades.
Isso ocorre não apenas em relação ao trabalho, mas também no restante de nossas vidas. Como vivemos em sociedades organizadas e estáveis, somos continuamente limitados a adotar padrões de comportamento. Isso envolve o que se deve vestir, comer, para onde viajar, que preferências cultivar, que gostos se deve ter, como se deve andar etc.
A vida nas sociedades que vivemos sugere uma série de pequenas avalanches sucessivas que vão soterrando nossas inclinações. Cada camada é um pequeno esquecimento em que deixamos de lado interesses verdadeiros, emoções que nos dizem respeito. Cada pequena abdicação, cada mínimo esquecimento cotidiano de quem somos e do que nos interessa verdadeiramente, vai criando uma camada fina de terra sobre aquilo que poderíamos ser. No final do processo, anos depois, só se percebe na paisagem as toneladas de terra que se colocaram sobre nós e o esquecimento nos domina.
Por que a Páscoa não acabou
Porém – como disse antes – tudo está conectado e a morte é uma oportunidade para renascer. Essas camadas de terra podem ser simplesmente uma ocasião para fazer brotar o que está morto em nós. E é aqui que se pode realmente comemorar a Páscoa. Aquilo que parece perdido e morto nunca o está em definitivo. O esquecimento que nos atinge pode ser entendido como o tempo de maturação das sementes, como uma dormência que permite um impulso para fora, para a superfície e para o ar fresco.
Toda a dor, todo o sofrimento, tudo o que nos parece opressor, difícil e mesmo incontornável e definitivo, tudo isso pode ser uma oportunidade se levarmos a sério a Páscoa. Não quero aqui diminuir a intensidade da dor e a seriedade dos problemas práticos, da fome e da miséria de outros seres humanos. Pelo contrário, a Páscoa é uma oportunidade revolucionária não só do ponto de vista pessoal e íntimo, como do ponto de vista prático e político. Quem deseja reverter o que lhe parece errado – seja o que for – quem deseja renovar e renovar-se precisa lançar mãos a obras e começar.
A Páscoa é a oportunidade para revertermos as toneladas de terra que estão sobre nós. Não interessa o que você tenha esquecido, o que tenha abandonado, o que tenha sofrido. Interessa que você está sempre em condições de florescer. E é claro que essa Páscoa não termina nesse mês.