por Monica Aiub
As perguntas e contribuições, enviadas pelos leitores a partir do último texto aqui publicado, suscitaram algumas questões: é possível que adoecer seja um padrão, uma forma “viciada” de solução de questões? Uma espécie de “armadilha” na qual a pessoa está enredada? Como identificar se essa forma é, de fato, necessária? Haveria um modo de substituí-la por outras menos prejudiciais? Se esse é um padrão, haveria outros padrões, tão ou mais prejudiciais, em nosso modo de ser? Como identificá-los? Seria possível transformá-los? Essas questões remetem ao problema dos padrões de pensamento e de vida, que será aqui abordado a partir da Filosofia Clínica.
Enquanto um partilhante (paciente) conta sua historicidade, o filósofo clínico observa, como já descrito em artigos anteriores, vários aspectos relativos a Exames Categoriais, *Estrutura de Pensamento e **Submodos, o que corresponde a, respectivamente: o universo no qual o partilhante está inserido, o modo como se constitui a partir de suas vivências, e as formas de lidar com as questões advindas da existência. Como observar tantas coisas, tantos dados e detalhes ao mesmo tempo? A questão não está em se fixar em detalhes esparsos, mas em acompanhar o fluxo das ideias, os movimentos existenciais, as modulações entre as diferentes formas de vida.
Cotidiano e confusão
Às vezes, em nosso cotidiano, não conseguimos observar os movimentos. Olhamos para nossa existência como quem olha fotografias, e ao invés de relembrarmos momentos, situações, passagens, nos fixamos nos detalhes fotografados. Isso nos provoca, em certas ocasiões, uma confusão, um não reconhecimento de como, partindo de um determinado estado, chegamos a outro. Você já se encontrou em situações sem compreender como chegou a elas? Já observou uma característica sua ter sido transformada sem que você percebesse como? Uma mudança no gosto ou naquilo que considerava importante, por exemplo?
Ao sermos provocados a contar nossa história em clínica, surge a possibilidade de rever os processos, as passagens de um estado a outro. Há casos em que o partilhante observa tais processos imediatamente, há casos em que se faz preciso provocá-lo a observar os movimentos.
Movimentos existenciais
Observando os movimentos existenciais de um partilhante, é importante atentar para as relações existentes entre o mundo que o rodeia e seus estados e modos de ser. Há pessoas que diante de situações similares respondem de maneira similar, criando uma espécie de padrão em suas respostas. Há casos em que as respostas são colocadas em forma de ação, trazendo graves consequências ao partilhante e às pessoas de suas relações. Mais que isso, há casos desse gênero que não são percebidos pelo partilhante, que age sem perceber o impacto de suas ações sobre si mesmo e sobre os outros, e sem considerar a possibilidade de agir de tal maneira apenas repetindo um padrão de pensamento ou de comportamento.
Além de compreender as relações existentes entre o partilhante e seu entorno, o filósofo clínico destaca os dados da Estrutura de Pensamento, ou seja, os modos como o partilhante se constitui no decorrer de sua existência. Ainda que muitos de nós estejamos diante dos mesmos contextos, a forma como somos provocados e nossas reações a eles são diferentes. Ao estudar a Estrutura de Pensamento, o filósofo clínico dirige seu olhar para os movimentos estruturais do partilhante: como os contextos lhe tocam, como ele se movimenta diante das situações da vida, como ele constrói a si mesmo e ao mundo a sua volta.
Princípio délfico
Habitualmente, você avalia como os eventos lhe tocam? Compreende como se dá sua movimentação existencial-estrutural? O princípio délfico “Conhece-te a ti mesmo” ainda hoje pode ser uma significativa maneira de fortificação existencial, de construção de si mesmo. Não no sentido de encontrar uma essência pré-determinada, como algumas pessoas interpretam, mas um conhecer suas necessidades, seus estados, suas formas de ser, e aperfeiçoá-los na medida de suas escolhas. Muitas vezes nos enredamos nas questões do cotidiano e esquecemo-nos de olhar para nós mesmos. O trabalho em Filosofia Clínica é um resgate do exercício desse olhar para si mesmo. Não um olhar que se fecha em si, individualista ou objetificado, mas um olhar voltado para si, para o outro, para o mundo e suas respectivas relações de constituição.
Como o filósofo clínico pode observar a Estrutura de Pensamento de um partilhante se há tantos tópicos a serem considerados? Como fazer se os conteúdos dos tópicos variam de acordo com as alterações no entorno? E como observar os pesos de tais tópicos se isso se transforma de acordo com a presença ou ausência, com a força ou fraqueza de outros tópicos? Para que o filósofo clínico não se perca na confusão do excesso de dados, são necessários critérios, que são: assunto, dado padrão e dado atualizado.
Assunto
O assunto é o motivo pelo qual o partilhante procurou a clínica, é sua queixa, o que lhe incomoda. É compreensível que o filósofo clínico observe tudo o que se relaciona, direta ou indiretamente, ao assunto, a fim de situar a questão e obter dados para auxiliar o partilhante a refletir e lidar com ela. Contudo, restringir-se à observação do assunto e dos pontos vinculados a ele poderá impedir a compreensão de outras possibilidades de existência ou de armadilhas que absorvem e enredam a pessoa em problemas que parecem não ter solução.
Quando você está diante de um problema a resolver, pensar apenas nele pode auxiliar, porque determina e direciona o foco. Mas também pode impedir a solução do problema, pois você poderá ficar preso a uma única forma de pensar, de ser ou de agir, não sendo capaz de enxergar a solução que se apresenta num formato diferente.
Dado padrão
Observar o dado padrão significa considerar, nos diferentes momentos da existência, o que se repete. Podemos observar, em contextos completamente distintos, uma mesma forma de pensamento, de posicionamento, de ação. Você consegue identificar, na sua história, padrões que se repetem? E na história das pessoas que convivem com você?
Há, nesses padrões, conteúdos que se repetem, como por exemplo, a pessoa que durante toda a sua história relata preocupações sociais, ou problemas familiares, ou sucessos financeiros, ou outro conteúdo qualquer. Mas também há formas que se tornam um padrão, por exemplo, a pessoa estabelece uma busca, diante da primeira dificuldade desiste dela, a desistência provoca fortes emoções e ela adoece; somente consegue livrar-se da doença quando estabelece uma nova busca. Esse mesmo padrão pode se repetir com diferentes buscas, obstáculos distintos, emoções variadas e doenças diversas durante a vida da pessoa.
Um padrão lógico também pode ser encontrado, como uma mesma forma de encadear ideias, chegando a um mesmo tipo de resultado falacioso. Esse padrão pode ter sido aprendido, inventado, distorcido a partir de outros padrões… O que importa é observar o funcionamento do padrão e o resultado que ele produz para a pessoa que dele faz uso. Muitas vezes, para encontrar uma solução para o problema é necessário desfazer esse padrão, construindo novas formas de elaboração do pensamento.
Quando um filósofo clínico observa a Estrutura de Pensamento, não se restringe a aspectos lógicos. Todo o processo cognitivo é estudado, assim como as emoções, as diferentes formas de expressão, as relações, enfim, todos os dados que se apresentam, a fim de obter elementos para a compreensão ou construção de novas possibilidades de formas de vida.
Um dos tópicos observados na Estrutura de Pensamento é Armadilha Conceitual. Neste tópico, especialmente, são observadas as formas repetitivas, os padrões que enredam, que prendem o partilhante em um modo de ser, de pensar e de agir. Armadilha não possui um sentido pejorativo. É assim denominada porque prende, enreda, compromete. Há Armadilhas maravilhosas, nas quais a pessoa quer, escolhe estar enredada. Por outro lado, há Armadilhas impeditivas, que não permitem a realização existencial.
Dado atualizado
Por fim, o terceiro critério, o dado atualizado, consiste na forma como a pessoa se encontra no momento presente, o que pretende fazer com o caso que lhe surge. Não adianta estudar padrões e esquecer que nos últimos tempos a pessoa passou por algum processo que transformou uma série de dados de sua existência. Para compreender seu modo de ser, será necessário pesquisar esses citados processos. Para encontrar um caminho para a questão, os dados do momento presente precisam ser considerados.
Com os três critérios, o filósofo clínico acompanha o movimento existencial do partilhante, compreende as passagens de um estado a outro e coleta dados para provocar a reflexão sobre novas possibilidades de ser. Esse trabalho é próprio da filosofia desde suas origens, mas nem sempre conseguimos fazê-lo sozinhos, pois nos prendemos a padrões de leitura do mundo e de nós mesmos, padrões de pensamento que nos impedem de provocar o surgimento de uma novidade que nos toque e que corresponda a nossas necessidades.
Nesse sentido, o papel do filósofo clínico é o de um interlocutor pronto a questionar esses padrões, alguém que lhe pergunta: precisa ser dessa maneira? Há outras possibilidades de ser? Você já experimentou pensar de outra forma (e há casos em que é possível provocar outras formas de pensar)? Você já se deu conta dos padrões que utiliza? Você já avaliou as consequências de optar por esses padrões ou restringir-se a eles? E se fosse diferente disso?
O filósofo clínico é alguém com quem se partilha os modos de vida e de pensamento, numa relação ao mesmo tempo distante o suficiente para que não surjam preocupações como: o que ele vai pensar de mim? Como será nossa relação depois que ele descobrir que sou desta maneira? E também uma relação próxima o suficiente para que a pessoa possa se colocar, “dizer o que não diz nem a si mesma” (como ouvi de um partilhante), com disposição suficiente para pensar e re-pensar seus processos de construção de si mesma. A diferença entre o amigo que nos questiona e o filósofo clínico, além do distanciamento já citado, encontra-se no estudo, na formação, no treino em identificar, desconstruir e suscitar novos padrões de pensamento, assim como o faz com os conceitos na História da Filosofia.
*Estrutura de Pensamento: modos como o partilhante se constitui no decorrer de sua existência
**Submodo: Em filosofia clínica, as formas, os modos que utilizamos para lidar com nossas situações são denominados submodos