Humanizar os animais está relacionado a uma extensão dos direitos aos animais equiparando-os aos do ser humano. E isso significa uma extensão das relações humanas ao mundo animal; entenda como isso ocorre
Recentemente dois cães receberam uma indenização de seus antigos tutores por maus-tratos. A sentença foi decretada pela Justiça do Estado do Paraná. A novidade aqui é que abertura do processo foi realizada em nome dos dois cães. Isso significa que o sistema judiciário brasileiro reconheceu a personalidade jurídica dos dois animais. Para todos os fins legais, eles são pessoas.
De fato, há um verdadeiro avanço no sentido de tornar os animais semelhantes aos seres humanos. O reconhecimento da personalidade jurídica é um passo importante nesse sentido, porque equipara as relações entre seres humanos às relações existentes entre esses e os outros animais.
Isso parece significar que estamos ampliando os direitos além da humanidade, de modo a incluir também outros animais. Se for assim, podemos falar de uma ampliação da democracia de modo a equilibrar as relações entre todos os seres vivos.
Sabemos que há um avanço gradual da dimensão subjetiva nas sociedades ocidentais. Isso significa que o indivíduo tem sistematicamente reivindicado a ampliação de reconhecimento de suas próprias especificidades. Isso quer dizer que tudo o que ocorre com cada indivíduo ocupa um espaço existencial cada vez mais amplo. Tudo o que é ligado a ele torna-se mais e mais importante.
Então pode parecer que a ampliação dos direitos dos animais implica em alguma forma de retrocesso nesse avanço do valor da individualidade humana. Afinal, se trata de afirmar que os animais valem por si mesmos, a despeito de sua utilidade para os seres humanos. Em último caso, isso parece dizer que há limites para a utilização dos animais ou que não podemos instrumentalizar tudo à nossa volta. Se trata, aparentemente, de uma limitação da vontade individual que tende a dominar o mundo inteiro, dada a dinâmica da subjetividade contemporânea.
Por que se humaniza cada vez mais os animais?
Porém, não creio que seja isso o que está ocorrendo. A extensão dos direitos dos animais não envolve nenhum tipo de obstáculo à dimensão individual da vida humana. Ela não expressa nada semelhante a uma contenção desse movimento. Pelo contrário, ela faz parte da intensificação do valor da individualidade.
O que a extensão dos direitos aos animais significa é exatamente o que esse termo já indica: uma extensão das relações humanas ao mundo animal. Não estamos diante de um movimento de inclusão de seres diferentes em um tipo de sociedade multiespécie. Essa sociedade seria aquela capaz de integrar diferentes seres de acordo com sua própria especificidade. Bem, sabemos que os animais não possuem personalidade jurídica no mundo animal. Essa não é sua situação natural nem eles se movem em direção à obtenção da personalidade jurídica. Embora pareça trivial, a obtenção dessa conquista não está ocorrendo através da mobilização política dos animais.
Por isso o processo de aquisição de personalidade jurídica é uma extensão das relações humanas em direção aos animais. Se preferirmos, se trata de uma humanização dos animais. Portanto, o que está em jogo aqui é uma tentativa de incorporar os animais ao mundo humano, segundo os procedimentos já existentes nesse último. Não se trata de ampliar a sociedade humana para além de seus limites atuais. Isso implicaria reconfigurá-la de modo a que ela se tornasse capaz de incorporar animais segundo seu próprio modo de vida. Os animais estão sendo incluídos de acordo com os parâmetros existentes nas sociedades humanas preexistentes.
Por isso, a aquisição de personalidade jurídica é apenas mais uma ocasião em que o indivíduo projeta sobre a natureza suas próprias necessidades, sua maneira de ser, sua importância e sentido. Não há nada aqui como uma intenção de ampliar a sociedade para além dos limites da humanidade. O que se apresenta é, pelo contrário, a intensificação do humanitarismo para além dos limites convencionais, em direção àqueles que ainda são os outros – mesmo que vivendo sob a sombra do poder humano, uma pequena zona de vida residual ainda não humanizada.
A despeito da falência óbvia do poder como uma forma de vida viável nesse planeta, a extensão da personalidade jurídica aos animais pretende ampliar ainda mais suas dimensões. Isso porque mais poder não pode resolver os problemas causados pelo poder. Estamos presenciando um dos últimos assaltos do ser humano sobre a natureza, uma sofisticação da crueldade – sempre revestida de humanismo.