Por que uma propaganda de medicamento se torna um filme de terror?

Entenda os elementos aterrorizantes que podem estar ocultos naquela propaganda de medicamento que você assistiu. É o estilo de vida patológico.

Uma propaganda pode ser muito ilustrativa sobre o mundo em que vivemos. Em uma delas, um personagem cansado pelo dia extenuante de trabalho reclama da dor de cabeça insistente. Como solução, se anuncia um comprimido milagroso que retira a dor em um piscar de olhos. Se sugere que sempre que a dor retornar, você deveria ter em mãos uma cartela do medicamento indicado. Tudo estaria resolvido assim. Do meu ponto de vista, a propaganda é um verdadeiro filme de terror.

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Afinal, se trata de vender medicamentos que não necessitam de nenhum tipo de prescrição médica ou de acompanhamento. Então, a relação de consumo se estabelece diretamente entre o fabricante e o usuário, sem nenhum tipo de intermediários. Isso facilita enormemente os processos de convencimento e de venda. Não significa que uma relação de consumo de medicamentos mediada por um especialista em saúde seja necessariamente melhor. Mas ela torna o consumo de medicamentos um pouco mais complexa.

Propaganda de medicamentos: elementos aterrorizantes

Nessa situação mais simples, relativa à propaganda há vários elementos aterrorizantes. Sabemos que um fabricante de medicamentos visa o lucro de sua empresa. Então, é sempre melhor vender muito que vender pouco. Se ele puder vender ao menos um comprimido para cada pessoa que tenha dor de cabeça diariamente, melhor. Portanto, o seu sucesso como fabricante depende da existência de um grande número de pessoas com dor de cabeça diária.

A alma do seu negócio não é combater a dor de cabeça, mas ter o maior número possível de pessoas com dor de cabeça. Assim, ele poderá vender mais. Simplesmente não interessa ao fabricante um medicamento que elimine a dor de cabeça. Interessa um que alivie os sintomas de hoje de maneira rápida. Na verdade, o melhor é ter o máximo de pessoas com dor de cabeça todos os dias, de tal maneira que o fluxo produtivo e lucrativo não seja interrompido.

O que se vende é um paliativo para um sofrimento que deve retornar sempre

O que um fabricante de medicamentos do Século XXI deseja é uma população doente que ingere medicamentos diários – tudo na maior escala possível. O que realmente se vende é um paliativo para um sofrimento que deve retornar sempre. Nesse caso, a verdadeira indústria está orientada a criar uma demanda diária por uma pílula que arrefece o sintoma da dor de cabeça. Então, em último caso, ela é uma indústria de uma doença persistente – e, por isso mesmo lucrativa em longo prazo.

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A lógica dos negócios solicita doenças de longo prazo, doenças crônicas, cujos sintomas são amenizados por medicamentos diários. Esse é o melhor dos mundos para a indústria de medicamentos. Um que ela tenta construir para que possa prosperar.

Mas a propaganda ainda sugere mais coisas terríveis. Por exemplo, ela trata a dor de cabeça como um evento diário perfeitamente aceitável, algo natural como o nascer do sol. Afinal, é essa naturalidade que garante a demanda diária pela pílula. O fabricante tenta tornar a doença algo perfeitamente aceitável, contra o qual nada há que se fazer – a não ser amenizá-la por meio da pílula. A presença do doença em si mesma não é questionada, mas tratada como algo perfeitamente aceitável.

O que não é aceitável é o sofrimento diário, já que existe uma pílula que o elimina até o dia seguinte. A indústria de medicamentos é, na verdade, uma indústria da aceitação da doença crônica – sem a qual ela não pode prosperar como deseja.

Trabalhar e, em consequência disso, ficar doente, é natural

Além disso, o personagem com dor de cabeça está estafado pela labuta do trabalho. Mas nada se diz sobre a desumanidade de um trabalho que gera diariamente dor de cabeça. A propaganda sugere que esse tipo de trabalho está perfeitamente ajustado ao nosso mundo, que trabalhar de modo a ficar doente é natural. Ela não produz sequer a suspeita de que o problema em questão seja o trabalho desumanizador ou inadequado.

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Então, a indústria de medicamentos também é uma fábrica de passividade existencial e política. Afinal, em um mundo regido por um trabalho desumanizador ou para o qual as pessoas não estão adaptadas, haverá mais doentes. Quanto pior as condições de trabalho, mais doentes.

Estilo de vida patológico

A verdadeira indústria gera pessoas doentes e indispostas a se livrar de suas doenças ou porque elas são consideradas naturais ou porque elas são geradas por um tipo de trabalho naturalmente adoecedor. O que a indústria realmente produz são seres humanos dispostos a aceitar a doença e um estilo de vida patológico.

Essa é a direção indicada por uma simples propaganda de medicamentos. Por isso, ela parece um filme de terror em que vivemos. Em algum momento nós teremos que avaliar se é isso o que realmente queremos. Eu já fugi para as montanhas!

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie