Por Karina Okajima Fukumitsu
Mês internacional de prevenção ao suicídio; entenda por que é tão importante falar sobre esse tema tão espinhoso
“Antes me sentia perdido em mim mesmo e agora me encontro dentro de mim” – esta foi a fala de um querido cliente que tentou o suicídio e que, felizmente, após dois anos de psicoterapia, ressignificou suas percepções e ampliou sua maneira de enfrentar as adversidades que o impactavam.
A partir dessa fala, entendi que talvez a inospitalidade dos sentimentos, considerados “não nobres” pela sociedade, dentre outros, culpa, vergonha, tristeza e raiva, acrescidos à falta de pertencimento, podem precipitar aquilo que cunhei por processo de morrência (Fukumitsu, 2016).
O processo de morrência significa um definhar existencial resultante da complexidade de processos autodestrutivos. Nesse processo, invadida por crenças pelas quais a pessoa vislumbra que a única solução para seus problemas é a morte – e, por esse motivo, mencionei ser “o suicídio o ápice do processo de morrência” (Fukumitsu, 2016, p.169). Lembrei-me do intrigante Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. A obra provocou reflexões acerca das reações do ser humano quando enfrenta privações e tem de lidar com suas necessidades não satisfeitas, impotência, abandono e diversos sentimentos inóspitos. Tal livro me ensinou sobre a importância de deixar de ser cega para aquilo que é meu…
Em 2013, elaborei, durante a escrita do livro Suicídio e Luto: histórias de filhos sobreviventes, um questionamento: “Por que se calar se o falar é tão importante?” (Fukumitsu, 2013, p. 300). Na época, a frase se desvelou como convite para falarmos abertamente sobre suicídio, favorecendo reflexões acerca de tabus, preconceitos e pensamentos prejudiciais que dificultam os processos de reconciliação das vidas tanto àqueles que tentam o suicídio quanto daqueles que foram impactados pelo suicídio de um ente amado. Além disso, falar sobre o suicídio propicia a ampliação das informações sobre os sinais de alerta e de proteção, para que possamos nos orientar na conduta e no manejo do comportamento suicida.
A promoção de palestras, rodas de conversa, discussões, simpósios e congressos é importante para o suicídio ser tratado com respeito e seriedade. No entanto, tenho percebido minha inquietude e certa impaciência quando leio entrevistas e/ou participo de eventos que iniciam ou que circundam apenas a apresentação epidemiológica dos suicídios. Não quero menosprezar a importância quantitativa do assunto, mas desejo ressaltar que na prática preventiva ao suicídio não serão os números de suicídios que traduzirão as reais necessidades brasileiras para esse tema tão espinhoso.
Utilizam o termo “epidemia” para falar sobre o suicídio. Não concordo, sobretudo, por considerar que os suicídios não estão apenas vinculados a doenças, mas sim ao sofrimento existencial. Entretanto, concordo que há uma epidemia nessa seara do território da compreensão dos suicídios: a epidemia da “cegueira branca”, como Saramago ensina. A epidemia acontece quando negamos o que é mais nosso e quando nossas ações se tornam inflamadas pela competitividade, ganância e vaidade para sermos considerados como “os melhores da área” ou “como os mais experientes e reconhecidos no assunto”. É o ter se sobrepondo ao ser…
Quero trazer à luz um aspecto que considero estar à deriva na prevenção ao suicídio – a falta de acolhimento dos sentimentos inóspitos. No quesito do acolhimento aos mesmos, a ambição de reconhecimento não deve eliminar o propósito de acolher o sofrimento.
Setembro amarelo: mês internacional de prevenção ao suicídio – clique aqui
Referências
Alvarez, A. (1999). O deus selvagem: um estudo do suicídio. São Paulo: Companhia das Letras.
Fukumitsu, K. O. (2013). Suicídio e Luto: história de filhos sobreviventes. São Paulo: Digital Publish & Print.
Fukumitsu, K. O. (2016). A vida não é do jeito que a gente quer. São Paulo: Editora Digital Publish & Print.
Saramago, J. (1995). Ensaios sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras.
Fonte: Karina Okajima Fukumitsu é terapeuta e pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da USP