Por Aurea Caetano
O que faz com que nosso trabalho como psicoterapeutas seja tão importante e necessário nestes tempos?
Não me refiro aqui apenas à intensa polarização que vivemos, que tem transformado relações outrora afetivas em campos minados, que tem transformado amigos da vida em inimigos eternos, que têm apartado famílias, sócios e parceiros. Temos sentido, todos nós, um acirramento dos ânimos e dificuldade de diálogo; disputas são vividas sem “fair play”, há um campo de batalha, um jogo de “nós contra eles”, um lado e outro lado, sem possibilidade de intersecção, de encontro. Sintoma ou sinal de nossos tempos?
Não viemos parar aqui “por acaso”; não fomos induzidos a este caminho, levados a esta trilha sem querer, sem perceber, ou sim? Teremos sido impelidos por uma crença cega e obtusa num mundo perfeito, romântico, no qual por uma atuação onipotente, sem muita dor ou sofrimento, seríamos capazes de escolher entre o certo e errado e seguir “o melhor caminho”? Sim, em um mundo ideal estas discriminações seriam óbvias, não haveria dúvidas da direção a seguir e viveríamos novamente em um paraíso ou atingiríamos um estado próximo ao nirvana no qual tudo estaria resolvido, seríamos seres iluminados, sem conflitos.
Discuto aqui a questão das nuances e, parafraseando outra obra literária, dos “50 tons de cinza”. Estamos comprometidos, como psicoterapeutas, com a construção de um adequado espaço de afeto e empatia, no qual há conflitos profundos individuais e ao mesmo tempo coletivos. Afinal, somos todos seres de uma mesma espécie e temos funcionamentos semelhantes que podem ser pensados, questionados e aprofundados.
Trabalhando a partir desta polaridade, individual versus coletivo, podemos compreender o que há em nós de comum e ao mesmo tempo absolutamente único. É neste território hibrido, expressão do individual e do coletivo, da natureza e da cultura, que proponho pensar que não há uma verdade única, uma única solução.
Com muito trabalho e uma boa dose de “sorte” poderemos ajudar nosso paciente a encontrar um lugar confortável em si mesmo, espaço interno de pertencimento no qual possa encontrar sua melhor resposta ao dilema ou conflito que o faz sofrer. Essa solução é sempre, na melhor das hipóteses, a resposta adequada àquele momento ou à verdade possível. No entanto, pretender que minha verdade possível seja “a verdade” é temerário e, no mínimo, de uma onipotência atroz. Ao mesmo tempo, não se comprometer com ela é fugir à responsabilidade com o próprio caminho, com os sofrimentos e lutas que marcaram a trajetória, ajudando a chegar até este ponto.
Voltamos novamente, então, à necessidade de contemplar os dois polos, o que é meu, da minha verdade, daquilo que penso, construí e intui, trabalho de todo meu ser, e o que é do outro, de sua verdade e inteireza.
Negar ao outro o mesmo status é negar a existência de outras possibilidades de outras verdades e, acima de tudo, é negar o outro, o diferente, dentro de mim. Não há saída criativa possível sem a necessária contemplação das polaridades, buscando a transcendência, o meu caminho facilitando, ao mesmo tempo, ao outro a mesma prerrogativa. Esta saída só será possível de forma amorosa, com carinho e cuidado, comigo e também com o outro.