por Fátima Fontes
“… há espaços de humanidade e amor que transformam a árdua tarefa de viver… “
Introdução
“O inferno dos vivos não é algo que será: se existe um, é o que está aqui, o inferno em que vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Há duas maneiras de não sofrê-lo. A primeira é fácil para muitos: aceitar o inferno e se tornar parte dele a ponto de não conseguir mais vê-lo. A segunda é arriscada e exige vigilância e preocupação constantes: procurar e saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não são inferno, e fazê-lo durar, dar-lhe espaço.”
(Citação de Ítalo Calvino no livro A Cidade Invisível, apresentada por Zygmunt Bauman no seu livro: Tempos Líquidos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2007, p.114).
Queridos e queridas leitores e leitoras de nossa coluna Nós e Nossos Vínculos, reporto-me, como reflexão para este período pré-elitoral, aos meses de abril e maio deste ano (2014), pois foram infernais. Nas nossas grandes cidades temos vivido entre incêndios de ônibus e muitas depredações do patrimônio público em nome de uma “não mais passividade” face à paralisia de ações responsáveis de cidadania e de direitos; no campo, acompanhamos distúrbio e assassinatos diante de um governo que se finge de morto e que insiste em não executar uma reforma agrária decente que trate com responsabilidade e seriedade o nosso grande território nacional perdido entre uma corrupção dilacerante que autoriza aos de muitas posses a seguirem fazendo o que bem querem: devastando terras e a continuarem dizimando árvores milenares para criar pasto para alimentar boi, e a plantar soja para a exportação recorde que estamos tendo, e a escravizar gente que não vê outra saída a não ser trabalhar pela mínima subsistência. Isso, se não incluirmos os conflitos indígenas que também diante de um descaso intervencionista público, mantém os órgãos criados para cuidar da mediação de conflitos e seus agentes, como meros expectadores de massacres e mortes.
Com tristeza e consternação acompanhamos a barbárie dos linchamentos em muitas cidades brasileiras: ressaltamos o da dona de casa confundida com uma sequestradora de crianças no Guarujá, São Paulo e do homem acusado de estuprador de crianças em Joinville, ainda que a mãe das crianças tenha advertido do equívoco: estamos socialmente sem rumo, fomos inoculados por uma sede de fazer justiça com as próprias mãos, negando os muitos anos de desenvolvimento de caminhos mais humanos para lidar com os que infringiram a boa ética da convivência humana.
Lá fora, ao redor do mundo acompanhamos guerras, crianças e adolescentes sem futuro, pois seus pais morreram entre conflitos e lutas; meninas são sequestradas para diversos fins; lá e cá: o tráfico humano se acirra, a prostituição infantil se incrementa e a bola rola nos campos das novas arenas brasileiras, construídas, sabe-se muito bem como: a custa de várias mortes, porque se tem pressa e não se cuida de fiscalizar a contento a segurança de seus trabalhadores e de muito desvio de verbas, o que compromete o calendário de prazos e a segurança e qualidade dos estádios construídos. E quem é que vai assistir aos jogos esportivos, na grande maioria deles, quando a FIFA voltar para sua cartolagem internacional e os estrangeiros após fotografarem nossas belezas, se esbaldarem em orgias e sexo barato voltarem para seus infernos pessoais nacionais?
E muitos outros cenários se nos apresentam retratando nosso inferno cotidiano. Temo que tenhamos quase todos nós, seguido o caminho mais “fácil” apontado por Ítalo Calvino e apresentado na epígrafe que abriu esse texto: o de nos acomodarmos a um ponto tal que perdemos a capacidade de nos indignarmos com tudo isso. Mas me proponho neste texto a acender a chama e a estimular o segundo caminho apresentado pelo escritor italiano: aquele na qual de maneira constante e cuidadosa descobrimos, no meio do inferno, o que não é inferno e a ele damos espaço e o fazemos durar, ok?!
História do jovem neto que deixou de estudar e trabalhar para cuidar da avó
Acompanhamos em matéria publicada num jornal paulistano a história de um jovem que aos 21 anos, morador classe média de uma grande, complexa e desigual cidade brasileira, a cidade de Porto Alegre, decidiu parar a faculdade de Filosofia e largou seu emprego para se dedicar exclusivamente aos cuidados de sua vovó de 79 anos com um quadro avançado de Alzheimer.
Quando acompanhamos a linda e comovente história desse jovem neto, e o que o motivou a tomar a radical decisão de ser ele mesmo o cuidador da avó, percebo que podemos ter esperança, em meio a tanto inferno. O jovem Fernando Aguzzoli começou a perceber que a vovó já não reconhecia a quase ninguém e que em pouco tempo não seria mais capaz de distinguir entre eles quem era quem.
Ele se incomodou com o fato de perdê-la em vida e tratou de desenvolver um modo mais alegre e lúdico para lidar com os seus esquecimentos, e assim ele ia aproveitando os últimos momentos de vivência consciente da avó. Ele fez isso por ela e por ele! Ele foi descobrindo que ao apagar as memórias recentes, a avó o introduzia numa realidade muito especial, na qual as coisas se tornavam lindas para ela e aonde as pessoas não morriam. Percebia que nesse rearranjo existencial a avó conseguia vivenciar melhor suas limitações.
Passou a fazer um diário de seu cotidiano com a avó no Facebook, que passou a chamar a atenção de muitos internautas, sobretudo, de pessoas que tinham parentes com a doença. Desse interesse nasceu a ideia de escrever um livro, o neto e a avó, no qual além de contar histórias engraçadas, se propõe a dar dicas para cuidadores de familiares de pacientes com Alzheimer. A publicação também chamou a atenção de médicos e técnicos que se engajaram na obra oferecendo orientações mais técnicas. O livro deverá ser publicado em setembro deste ano.
Apesar de ter perdido a avó no fim do primeiro ano dessa experiência, que ocorreu por causa de uma infecção urinária, o jovem Fernando manteve a página no ar, e o fez, segundo ele, por consideração às pessoas que o apoiaram, pela falta de espaço para se falar nesse assunto e acima de tudo para manter, de alguma forma, a vovó viva.
Ufa! Podemos respirar, há espaços de humanidade e amor que transformam a árdua tarefa de viver entre dores e durezas de coração e práticas relacionais.
Antigo adolescente infrator decide ler e estimular a leitura entre adolescentes infratores cumprindo medida de internação
Conhecemos a proposta de cuidar de adolescentes autores de ato infracional que cumprem a medida de internação, através de matéria publicada na revista Carta Capital, coluna Sociedade, também em maio.
O escritor Luiz Alberto Mendes Júnior, autor do livro Memórias de um Sobrevivente (Companhia das Letras), passou 31 anos preso em diversas cadeias brasileiras, e se propôs a desenvolver um projeto de Oficinas de Leituras em Unidades da Fundação Casa. O objetivo do trabalho é auxiliar os adolescentes a “desglamurizarem” a carreira criminal, e abrir um espaço de expressão e troca de sentimentos e desejos de construção pessoal e social para eles.
Tendo conseguido o financiamento para o projeto com a revista Trip, o Luiz se associou com a ONG Ação Educativa, começou o trabalho e encontrou o que ele não imaginava: adolescentes inicialmente resistentes, arredios, desesperançados e rejeitando sua proposta. Descobriu que por ter se alijado da indústria prisional por mais de quarenta anos, esqueceu que lá, como em toda corporação, existem leis e regras, que deverão ser observadas, para que se consiga chegar perto de seus membros.
Impactado com a má recepção inicial e por ter sido, eles e seus dois companheiros de ONG alvos de violência verbal e física, pensou em desistir do projeto, mas quando esfriou a cabeça foi capaz de fazer a reflexão que o trouxe de volta: mas qual era a real expectativa dele? Queria encontrar adolescentes “docilizados”, submetidos aos desmandos e violências, sem revoltas? Não, era preciso “pedir licença” para ficar e voltar para ficar!
E foi isso que aconteceu, no outro dia em que voltou o primeiro adolescente que veio em sua direção foi o que iniciara a confusão do primeiro dia, com um livro na mão, muito agradecido pela possibilidade de ler e maravilhado com o que lera. A sala em que faria o trabalho estava abarrotada de audiência e o clima era de absoluta recepção.
Mais uma experiência que nos esperança: sempre houve, e sempre haverá pessoas com uma disposição humana e ética para tratar das complexas mazelas do ser humano e de suas relações; precisamos contar mais essas experiências, ao invés de multiplicarmos em retumbante eco as desgraças que nos afastam uns dos outros e ampliam nossos infernos.
E para finalizar…
Está lançado meu desafio, olhe para você: reflita sobre qual está sendo sua escolha para suportar seu inferno pessoal e tomara que você aceite minha proposta de pensar sobre isso e se juntar ao grande bloco dos que não são inferno no inferno!
Há uma canção que outro dia me aqueceu o coração nesta direção de me esperançar e de acreditar em tempos melhores, é uma música dos Titãs e deixo-a para ser cantada e vivida por cada um de nós:
Enquanto houver sol (2003)
TITÃS
Sérgio Britto
Quando não houver saída
Quando não houver mais solução
Ainda há de haver saída
Nenhuma ideia vale uma vida
Quando não houver esperança
Quando não restar nem ilusão
Ainda há de haver esperança
Em cada um de nós, algo de uma criança
Enquanto houver sol, enquanto houver sol
Ainda haverá
Enquanto houver sol, enquanto houver sol
Quando não houver caminho
Mesmo sem amor, sem direção
A sós ninguém está sozinho
É caminhando que se faz o caminho
Quando não houver desejo
Quando não restar nem mesmo dor
Ainda há de haver desejo
Em cada um de nós, aonde Deus colocou
Enquanto houver sol, enquanto houver sol
Ainda haverá
Enquanto houver sol, enquanto houver sol