por Monica Aiub
Quem é o outro? Aquele que não sou eu, aquele que é diferente de mim, aquele que me mostra que nem tudo é como eu imagino que seja. E o que ele provoca em mim?
É tão bom quando nos aproximamos de alguém que pensa como nós, que acredita no que acreditamos, alguém com quem podemos partilhar caminhos! Ao mesmo tempo é incômodo encontrarmos alguém que nos mostre o quanto estamos equivocados; o quanto os projetos que estamos elaborando não encontram respaldo na realidade. Como lidamos com isso? Há várias formas para se lidar com isso, e elas dependem de nós, do outro, do mundo e das relações que estabelecemos entre estes vários fatores.
Alteridade é a palavra que acompanha tais discussões. Alter significa outro; alteridade significa a qualidade de ser outro, o colocar-se como outro. Quando, no movimento de observação do outro estabelecemos a diversidade, o que é diverso, diferente, encontramos a diferença.
Falamos muito, hoje, de diversidade, respeito às diferenças, celebrar as diferenças, alteridade, e isso não apenas no âmbito de nossas vivências coletivas, tratando das relações entre os povos, mas também em nossas vidas singulares, em nossas relações com aqueles que nos rodeiam. Ao mesmo tempo, presenciamos muitas atitudes que demonstram exatamente o oposto do discurso de respeito à diferença, quando não somos nós mesmos os agentes de tais ações.
“Respeito o outro, desde que ele pense, sinta e aja como eu” pode soar como um terrível discurso, de alguém extremamente rígido, dogmático; mas, infelizmente, parece ser o fundamento, ainda, de muitas ações cotidianas.
Como você lida com as diferenças que se apresentam nas relações com o outro? Você costuma refletir sobre elas? Ou você costuma negá-las? Você conversa sobre elas com o outro? Ou você já considera que ele está errado e não há o que conversar? Ou ainda, você imediatamente considera que ele está certo, porque, afinal, você sempre está errado ou, simplesmente, porque o outro deve saber mais sobre o mundo que você? Você costuma investigar as bases, as origens, os motivos para se pensar de modo diferente? Na sua opinião, é possível que duas ideias diferentes sobre uma mesma questão possam ser, ambas, verdadeiras?
Reflitamos sobre algumas das formas colocadas. Há pessoas que costumam refletir sobre as diferenças, tentando compreendê-las, tentando ratificar ou retificar suas próprias ideias e ações. Poderíamos remontar algumas ideias presentes no pensamento de filósofos da Antiguidade. Platão, por exemplo, ao distinguir entre aparência e realidade, poderia responder a questão afirmando que uma pessoa está vendo apenas a aparência, enquanto a outra enxerga para além disso, ou que ambas estão com uma visão parcial, superficial da questão, estando ambas corretas, mas não totalmente, o que exigiria um mergulho mais profundo sobre a questão.
Mas que recursos teríamos para que pudéssemos fazer tal mergulho, buscando maior profundidade e, consequentemente, maior compreensão? Para ele o caminho seria o diálogo investigativo, buscando a gênese de nossos pensamentos, e verificando os possíveis erros no caminho. Nada como um outro, que não sou eu, para me provocar a ver aquilo para o qual estou cega. Mas para que eu possa enxergar se aquilo que o outro apresenta, mostra, faz algum sentido, preciso estar disposta a olhar junto com ele, a pensar junto com ele, a acompanhar seu processo de construção de ideias.
Da mesma forma, ele também deverá ter a mesma disposição para pensar junto comigo. Você conhece alguém, nas suas relações, que tem tal disposição? Você possui essa disposição? Caso afirmativo, geralmente, qual o resultado dessas conversas?
Observe que concluir, via diálogo, que algo é o melhor caminho apenas porque os participantes da conversa chegaram à mesma conclusão é arriscado, pois todos podem estar partindo da mesma perspectiva, de uma mesma forma de ler o mundo, e que pode não estar, necessariamente, correta. Podemos estar, todos, na mesma armadilha (clique aqui e leia), criando um sistema coerente de ideias, porém equivocado.
Obviamente, quem conhece um pouco do pensamento platônico sabe que ele não se referia a isso, porque para ele há uma realidade a ser descoberta, um “Mundo das Ideias”, no qual o conceito é o real. Mas como ter a certeza de tê-lo atingido? Além disso, nunca conseguiremos a garantia de termos explorado todas as possibilidades. Algumas poderiam nos escapar. Assim, voltamos à questão, como lidar com a diferença?
Negação é uma forma comum de se lidar com a diferença
Para alguns, o que se coloca como diferente daquilo que sou traz impedimentos, objeções a meu modo de ser. Assim, a busca de uma solução para o problema faz-se necessária. A negação é uma forma muito comum de se lidar com a questão, embora nem sempre seja a melhor. É diferente de mim? Não existe! Não pode existir. Por quê? Talvez porque pareça ser perigoso que algo diferente do que sou seja legítimo. Qual o perigo? Se apenas uma única forma for possível como verdadeira, a existência e afirmação do outro coloca em risco a existência e a afirmação daquilo que sou.
A questão se coloca como se competíssemos o tempo inteiro para a replicação de um modo de vida. Algo similar ao que Richard Dawkins denominou vírus, e em alguns casos vermes, da mente. Olhando assim, de fora, parece uma bobagem: “Por que alguém se sentiria ameaçado só por existir um outro diferente daquilo que ele é?”. Mas, se observarmos melhor nossa história e nossa vida cotidiana, perceberemos que há muitos exemplos assim.
O próprio diferente, quando busca afirmar-se negando o outro, repete a mesma forma de lidar com a questão. Se uma “minoria” decide defender seus direitos afirmando sua superioridade sobre a “maioria”, colocam-se apenas dois modelos e a necessidade por escolher um deles, mas o problema continua o mesmo. Deleuze, em um texto recém traduzido, no qual comenta o teatro e o cinema de Carmelo Bene, Um manifesto de menos, exemplifica de modo muito preciso essa questão. Imagine se hoje fosse retirado, de sua vida, ou de nossa sociedade, os elementos centrais, “principais”, como ela seria reordenada? Como ficariam as relações? Seriam as mesmas?
No livro Diferença e repetição, Deleuze discute o quanto, de fato, nós respeitamos a diferença, ou apenas repetimos o mesmo, os mesmos modelos, as mesmas formas, mudando apenas conteúdos. Muitas vezes tentamos resolver o problema da diferença dissolvendo-a na síntese. Mas esse também não é um caminho, primeiro porque a síntese poderá ser uma nova tese, e o problema será perpetuado ao infinito. Mas principalmente porque nem sempre, diante da diferença, a solução é a síntese.
A síntese pode conter elementos da tese e de sua antítese, mas supõe a necessidade de que se tenda sempre a uma forma única, destacando a impossibilidade do convívio com o diferente. Assim Deleuze exemplifica como a dialética hegeliana não resolve o problema da diferença, mas tenta absorver o diferente na síntese, reafirmando o modelo do “mesmo”, ou repetindo. Mas ele também exemplifica como muitas outras soluções tradicionais não o resolvem, apenas repetem o mesmo padrão.
Durante muito tempo, e ainda hoje este é considerado um caminho válido, a ciência foi responsável por apresentar as “provas” para validar determinados modelos. Pesquisas definindo os conceitos de normalidade, as médias, normas e padrões aceitáveis como o modelo vigente. Podemos observar que tais modelos se modificam. Por exemplo, diferentemente das pesquisas até então desenvolvidas, prescrevendo medicamentos para nos livrar do grande mal que é a depressão, no recém-lançado livro de Horwitz e Wakefield, A tristeza perdida, os autores discutem o papel da depressão para a sobrevivência e os perigos do uso de medicamentos em alguns desses casos, questionando o paradigma que faz da depressão a doença do século XXI.
Como você lida com a diferença quando há provas científicas da afirmação de uma postura? Você aceita porque a ciência traz respostas objetivas ou você reflete, pesquisa outras possíveis questões?
Por outro lado, a aceitação da legitimidade do outro, a efetiva celebração das diferenças, seria um bom caminho, ou também apresentaria os seus problemas? Estaríamos nós, confundindo o respeito com o “laisser faire”. Tudo é permitido e o que sobreviver é o melhor? As formas de organização da vida, tanto singular quanto coletivamente, não estariam, por si, definindo o permitido e o proibido na medida em que “tudo é permitido, mas assim não se consegue sobreviver”?
Como você, leitor, lida com o outro, com o diferente, com aquilo que não é você?
Referências bibliográficas:
DAWKINS, R. O gene egoísta. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal editora, 2009.
_____. Sobre Teatro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
HORWITZ, A.; WAKEFIELD, J. A tristeza perdida: Como a psiquiatria transformou a depressão em moda. São Paulo: Summus, 2010.
PLATÃO. Diálogos: A República. São Paulo: Nova Cultural, 2004.