por Elisandra Vilella G. Sé
Pesquisas sobre análise de narrativas podem revelar importantes aspectos do mundo social e psicológico dos indivíduos. Estudos qualitativos do discurso de pessoas idosas mostram que eles podem manter bom desempenho verbal e de memória mesmo na presença de alterações.
Exemplos dessas alterações são:
– Velocidade da fala e de seu tempo de reação;
– Alterações em processos sensoriais e em déficits na produção e compreensão de narrativas, associadas ao avanço da idade, ao nível educacional, a déficits em algumas funções mentais e a fatores ambientais.
No entanto, esse desempenho verbal e de memória depende da manutenção de estímulos de suas habilidades e da utilização de estratégias sóciocognitivas de compensação para adequar a linguagem e o discurso ao contexto de produção – à sua circunstância.
A linguagem é importante indicador de adaptação dos idosos, tanto em termos cognitivos quanto psicossociais. Analisar a linguagem dá pistas para a compreensão dos fenômenos do envelhecimento normal e patológico em idosos que vivem em ambientes ricos e empobrecidos, que mantêm a motivação e a atividade ou que as perderam por motivo de debilidade física ou psicológica e por falta de apoio social. As narrativas dos idosos permitem identificar como as pessoas usam as palavras para descrever seus pensamentos, situações, eventos e sentimentos. O contexto narrativo revela importantes informações sobre o agir, o pensar e o sentir e sobre o grau de adaptação psicológica dos indivíduos.
Com o envelhecimento, normalmente ocorrem mudanças nas funções linguísticas do nível semântico-lexical (relacionada ao vocabulário) caracterizadas pelas dificuldades em lembrar palavras na conversação, em nomear os objetos e em fluência verbal. Porém, muitos idosos podem manter preservadas as suas habilidades linguísticas, mantendo bom desempenho verbal por estimulação proveniente do ambiente.
Os idosos podem apresentar alto grau de especialização cognitiva, derivada da influência da cultura, que lhes permite superar as limitações biológicas dependentes da idade, bem como compensar déficits educacionais e desestruturações ambientais. Alguns fatores demográficos são identificados como preditivos da manutenção do funcionamento cognitivo. Entre eles, incluem-se alto nível de escolaridade e de renda, altos índices de satisfação pessoal e existência de maior rede de vínculos sociais.
Uma narrativa ou um relato coerente é uma tarefa cognitiva complexa que requer uma boa organização e planejamento da linguagem que incluem a ordem das palavras, a ordem das sentenças, o uso de artigos e pronomes, as conjunções, a concordância e a conjugação de tempos verbais. Esses elementos constituem o mecanismo de coesão do discurso oral, para que o relato tenha relevância com o tema proposto.
Pesquisas que compararam narrativas de idosos e jovens sugerem que há diferenças na ênfase das narrativas, demonstrando que os jovens preferem relatar fatos e ações objetivas, ao passo que os idosos encadeiam os fatos de forma subjetiva, expressam mais sentimentos, emoções e julgamentos afetivos em seus relatos e fazem mais uso das informações da memória episódica (memória para fatos vivenciados no passado).
Não só as mudanças das funções cognitivas como também as do estado afetivo em idosos podem refletir-se na recuperação das informações de natureza objetiva e subjetiva que possam relatar em seus discursos orais. A afetividade tem papel fundamental nos processos de memória que formam a base do conhecimento.
Os relatos e interpretações subjetivas dependem de fatores contextuais, de motivações pessoais, de interesses e de eventos sociais que determinarão quais significados devem receber mais atenção. Os estados afetivos e motivacionais modulam a intencionalidade dos relatos pessoais. Podem influenciar a maneira como os processos emocionais dificultam ou facilitam a recuperação dos eventos passados para uso na sua vida atual.
Por exemplo, três pesquisadores americanos Atchley, Ilardi e Enloe (2003), investigaram o conteúdo emocional contido nas emissões verbais de pessoas com depressão. Os autores verificaram maior número de conteúdos de julgamentos afetivos negativos nos participantes deprimidos do que nos *indivíduos-controle. Os julgamentos afetivos negativos foram demonstrados pelo uso de adjetivos. Concluíram que a sensibilidade ocasiona diferenças na organização semântica (organização de palavras) de indivíduos que têm diferentes experiências afetivas.
Como o conteúdo do discurso é profundamente afetado pela emoção, pelos desejos e pelo afeto, os relatos pessoais nos permitem avaliar o bem-estar subjetivo dos idosos. As emoções denominadas “afetos positivos” ou “bem-estar emocional” constituem fatores preditivos da independência funcional e da manutenção da função cognitiva em idosos.
O reconhecimento das emoções positivas e negativas nos relatos dos idosos funciona como forma de prevenção de riscos de depressão. Portanto, as narrativas são instrumentos valiosos para revelar importantes aspectos do mundo social e psicológico dos indivíduos.
A mesma coisa acontece na identificação de sintomas de falhas de memória e de linguagem em pessoas que podem estar desenvolvendo uma demência. A experiência de vida, as práticas sociais, os conhecimentos gerais e específicos sobre as condições de vida, as estratégias de julgamento e aconselhamento, a capacidade de relatar fatos históricos, o desempenho em tarefas e metas evolutivas, o uso de estratégias socioculturalmente estabelecidas ao longo da vida do sujeito narradas de forma espontânea auxilia os familiares e profissionais a identificar como está o desempenho da memória e de outras funções mentais.
Uma abordagem psicossocial da velhice e numa abordagem enunciativa e sociocognitiva da linguagem nos ajudam a compreender o discurso como uma forma de ação social, uma prática situada em um contexto histórico-social, em que as normas que regem a vida em sociedade, a utilização da linguagem estão inseridas.
*Indivíduos-controle: grupo de indivíduos saudáveis para comparação