Reflita: em relação a quase tudo na vida podemos nos eximir de responsabilidade

por Luiz Alberto Py

Texto extraído de meu diário (2005)

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De quarta para quinta-feira tive um sonho com papai. Na quinta-feira pela manhã eu iria – e fui – pegar um avião para comparecer ao enterro de uma amiga, em São Paulo. No sonho, meu pai – que já é falecido há muitos anos – trazia uma caixa de ferramentas e se queixava de que eu havia colocado dentro dela uma ferramenta quebrada. Na verdade, nem era uma ferramenta, era apenas um pedaço de ferro de uns 15 cm de comprimento, chato e irregular, com uns dois cm de largura, meio retorcido e um pouco enferrujado. Eu respondia que não havia colocado aquilo na caixa e pegava o ferro que meu pai me mostrava pensando: “Vou jogar este negócio fora para não haver possibilidade de alguém voltar a colocá-lo na caixa”. E dizia para meu pai que não se preocupasse que eu ia resolver o problema.

À tarde, estive com Silvia, uma amiga que também estava no funeral e que me convidou para almoçar em sua casa antes de minha volta para o Rio. Durante a refeição, ela me contou um pesadelo que a filha havia tido e então me lembrei do sonho já esquecido e contei-o a ela. Depois do almoço ela saiu para trabalhar e fiquei sozinho esperando seu marido que iria me dar uma carona até o aeroporto. Fiquei pensando no sonho e fui me dando conta de que nele havia uma mensagem para mim mesmo: “Não basta não ter feito, é preciso evitar que seja feito novamente”. Uma atitude ativa é fundamental, mesmo quando temos boas desculpas. É curioso que toda vez que sonho com meu pai encontro no sonho uma lição a ser compreendida. No sonho eu sentia que não era suficiente negar minha responsabilidade sobre colocar o ferro na caixa de ferramentas, mas que eu deveria tomar uma atitude para que o erro não se repetisse.

Relacionei o sonho com minha decisão de ir a São Paulo para o funeral. Poderia me dar uma desculpa e evitar a viagem, mas estar lá era importante para mim e eu não devia fugir da situação. Eu sabia que iria sofrer lá, principalmente durante o enterro. Sabia que iria encontrar o marido dela, meu grande amigo e que partilharia de sua tristeza. Mas me senti muito bem por ter ido. Quando abracei meu amigo, lhe disse que eu tinha ido para o enterro muito mais por mim do que pela mulher dele, que já não estava mais lá para me encontrar.

Fui pelo meu carinho por ela, mais ainda pela minha amizade com ele, mas acima de tudo para não me privar de viver aquele momento apesar da dor dele. Viver a dor na hora dela, sem fugir.

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Aliás, quando recebi a notícia, por uma mensagem dele na caixa postal do meu celular, de que ela havia sido sedada, chorei muito. Entendi que era o fim de uma longa agonia, de um câncer que durante anos a consumiu. Fiquei surpreso ao perceber o quanto estava perturbado por uma morte já esperada. Foi tanto que só conseguir ligar de volta para meu amigo cerca de duas horas depois de receber a notícia, pois não conseguia controlar o choro. Quando liguei, a empregada deles me deu a noticia do falecimento e novamente não consegui conter o choro. Mas gostei, achei que foi bom e saudável o fato de estar com os sentimentos à flor da pele.

2010

Voltando à lição do sonho, penso que é importante esclarecer que minha atenção, ao relembrá-lo, ficou tomada pela ideia da importância de assumir responsabilidades e não buscar desculpas, nem esquivas. É claro que costumeiramente vemos pessoas que quando cobradas de alguma tarefa não executada se esforçam para explicar que não lhes cabe responsabilidade sobre a situação. E é comum que isto seja verdade, muitas vezes podemos ver algo errado acontecer e dizer para nós mesmos que aquilo não nos diz respeito. Aliás, em relação a quase tudo na vida podemos nos eximir de responsabilidade. Mas em meu sonho era claro que isto não satisfaz. É como se nos estivéssemos recusando a viver, a participar, a sofrer junto o que precisa ser sofrido. Nós não somos feitos de cristal e não precisamos ter medo de quebrar com facilidade.

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Semana passada, fui e voltei no mesmo dia para São Paulo a fim de assistir ao casamento da filha de meus amigos. Também não precisava ter ido, podia inventar uma desculpa para mim mesmo, pensar que estava cansado demais depois de uma longa jornada de trabalho e me poupar do esforço de acordar cedo e fazer uma cansativa viagem. Mas, e a alegria da festa? A satisfação de ver uma vida evoluindo, uma família superando uma já antiga dor? Por que me privar de tudo isso?

Quanto mais amigos e pessoas queridas fizerem parte de nossa vida, mais momentos de dor sofreremos com eles. Porém é certo também que mais momentos de alegria teremos.

Se nos anestesiamos para não sofrer, a mesma anestesia nos impedirá o prazer. O muro que nos protege da dor é o mesmo que nos aprisiona e afasta o amor.

Reflita: em relação a quase tudo na vida podemos nos eximir de responsabilidade

por Luiz Alberto Py

Um amigo me procurou para contar que ficou deprimido com um incidente. Ele havia começado um curso de inglês, teve excelente desempenho na primeira aula e, na segunda aula, encontrou-se com uma professora que o conhecia. Ela, que já havia recorrido a seus serviços profissionais, fez rasgados elogios a ele na presença de seus colegas de aula, o que o deixou constrangido e inibido. Como resultado, seu desempenho na aula foi péssimo: não conseguia falar com desembaraço, gaguejava e não se lembrava de coisas elementares. Percebeu que tal comportamento estava relacionado com os elogios recebidos. "Me senti observado, cobrado, obrigado a um grande desempenho".

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Comentei que o seu sentimento (observado, cobrado, obrigado) correspondia a uma expectativa, imaginada por ele, em relação às pessoas presentes à aula. Indaguei se ele não achava esta expectativa agressiva. Concordou, dizendo que se sentia ameaçado de ser criticado. Perguntei: "Por que esperar tal agressividade de pessoas que você nem conhece?" E sugeri, como resposta, que esperamos dos outros de acordo com nossas experiências ou sentimentos.

Má vontade com quem faz sucesso

E que experiências ou sentimentos seriam estes? Minha ideia é que seria uma má vontade antecipada para com pessoas que se destacam (como ele havia se destacado, ou melhor, sido destacado pela professora). Acrescentei as perguntas: "Por que esta expectativa de má vontade? Que sentimento mobilizaria as pessoas a serem hostis aos que aparecem, são elogiados ou fazem sucesso? Ele me respondeu, meio perguntando: "Inveja?"

Que inveja seria esta? Donde viria? Para responder convém não esquecer que estamos falando do que ele está sentindo. "Minha inveja? Sou invejoso?", ele pergunta. Propus imaginarmos que seus sentimentos não correspondem a uma reflexão objetiva; neutra e fria, mas se originam de emoções que em geral correspondem a sentimentos antigos, coisas vividas muito precocemente como, por exemplo, uma criança que sente inveja do poder e liberdade de que seus pais parecem dispor.

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Na verdade, esta observação sobre a inveja primitiva foi desenvolvida pelos primeiros psicanalistas. O próprio Freud, criador da psicanálise, falou da rivalidade que observou em seus clientes com relação à figura do pai e descreveu suas observações dando ao fenômeno o nome de "Complexo de Édipo". Desenvolvendo um pouco mais o tema: se a criança sente inveja de quem considera mais forte, ou melhor, nada mais natural do que temer ser invejado quando estiver sendo assim considerado.

Neste caso, faz sentido a pessoa ficar assustada e atrapalhada pelo medo da repercussão de sua imagem junto às pessoas que nem conhece, pois supõe que elas sejam igualmente invejosas dos que se destacam ou fazem sucesso. De acordo com esta maneira de sentir (não chega a ser uma maneira de pensar, pois o pensar está vindo depois, como uma reflexão sobre o que é sentido), a admiração e a inveja andam de braços dados; portanto ser admirado significa estar ameaçado de se tornar alvo da inveja alheia; quanto mais pessoas admirando, mais pessoas invejando, hostilizando e agredindo.

Ele contou que o incidente que me narrou o deixou deprimido, com dificuldade para qualquer desempenho e concordou que poderia ser uma reação de medo de que as pessoas (todas e quaisquer pessoas) o invejem e o hostilizem se fizer sucesso. Acrescentou ter muita dificuldade de mostrar os resultados finais de seus estudos e trabalhos por temer – a ponto de ficar paralisado – as críticas que porventura possa receber. Perguntou-me como se pode sair desta situação.

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Disse-lhe que existe uma via paralela à da inveja e hostilidade, pavimentada por amor e gratidão. Expliquei que, ao mesmo tempo em que inveja os pais e com eles rivaliza, a criança também percebe o carinho e amor com que está sendo ajudada por estes mesmos pais e assim pode não apenas invejá-los, porém também sentir gratidão pelo que deles recebe.

Portanto, para neutralizar o sentimento que nos leva a uma expectativa de hostilidade por parte de nossos possíveis rivais devemos compreender que tais rivais podem muito bem se tornar admiradores e amigos nossos, principalmente se pudermos acreditar em nossa capacidade de partilhar com eles nosso sucesso e nossas conquistas. O grande segredo está, portanto, em nossa capacidade de transformar rivalidade em solidariedade investindo no amor fraterno para com ele contrabalançar o ódio, a marca de Caim.