por Regina Wielenska
Perspectivas e contextos fazem diferenças, seja na paz ou na guerra: reflexões sobre arte, humanos, formigas e tamanduás.
Um enorme mural enfeitava a parede do restaurante de um hotel onde me hospedei. A cada dia tomei o café em mesas diferentes. O jeito com que eu percebia o mural – em seus detalhes ou como um todo – se transformava conforme eu me sentasse mais ou menos próxima dele, variasse o ângulo e o lado pelo qual o observava, ou de acordo a luz ambiente. Óbvio, não é?
Algo parecido, porém mais intenso, ocorreu quando visitei Guernica, a obra de Pablo Picasso exposta no Museu Reina Sofia em Madri, no exato momento em que vi o quadro fiquei decepcionada. Na imaginação, o quadro sempre me pareceu maior e teria recebido pinceladas mais vívidas, de certo modo diferentes do que enxergava à minha frente. Quis observar o quadro a diferentes distâncias, reexaminá-lo. Sentei-me num banco largo colocado ao dispor dos visitantes, comecei a lembrar que a obra fora produzida sob o impacto das fotos que documentavam a destruição da cidade basca de Guernica, por conta de um bombardeio alemão.
Pensei que o quadro nos remetia à aliança entre nazistas e franquistas, que resultou na morte de tantos civis indefesos, em meio ao embate entre o ditador Franco e os republicanos durante a Guerra Civil Espanhola, durante o período em que Hitler ganhava poder. Minha percepção foi se transformando gradualmente. Alternei o olhar entre alguns detalhes e o todo, um imponente quadro com aproximadamente 13m2. Aos poucos, me recuperei da decepção inicial e entrei em contato com sua imaterial grandiosidade.
Formigas são mais do que insetos: um pequeno ser e suas funções
No que essas vivências frente a obras de arte se assemelham ao restante do funcionamento humano, do jeito como posicionamos perante as “coisas do mundo”?
Para responder a isso, escolhi falar de formigas!
Uma formiga pode ser, por exemplo:
• esmagada impiedosamente por um habitante de um apartamento na metrópole;
• devorada frita como petisco crocante em alguma cidade distante dos grandes centros;
• ignorada pelas pessoas;
• reverenciada como a representação do dom da vida, ao passar aos pés de um monge;
• tornar-se objeto de estudo de etólogos, geneticistas ou agrônomos;
• e, justificadamente, ser motivo de preocupação para o comitê de combate à infecção hospitalar de uma instituição de saúde ou da Vigilância Sanitária, quando esta avalia as condições de um estabelecimento comercial.
Ou seja, o organismo formiga sinaliza possibilidades completamente diferentes conforme as características dos que estão à sua frente e com ela se relacionam. Uma formiga se transforma conforme o olhar de quem interage com ela.
O inseto e a palavra que o nomeia: mais sutilezas
Independente do inseto, a própria palavra formiga funciona de modo similar. Por exemplo, para quem está se alfabetizando, sílabas como FOR e MI representam distintos graus de dificuldade para as atividades de leitura, cópia e escrita. Se um homem cometeu suicídio tomando formicida, a palavra “formiga” pode por muito tempo despertar emoções dolorosas no filho órfão. Para indivíduos fortemente alérgicos a picadas de inseto, estar próximo a uma formiga é ameaça, enquanto que para um tamanduá o inseto é alimento de primeira linha, mas nesses dois casos a palavra formiga não seria capaz de provocar reações alérgicas na pessoa ou saciar o animal.
Com esse mundaréu de analogias pretendo salientar que o que pensamos e sentimos a respeito de algo depende de nossas características individuais (depende se sou monge, tamanduá, skatista, biólogo, etc.), entrecruzada com a nossa maneira de abordar o mundo.
Não basta apenas que haja contato com a “coisa em si” ou com palavras relacionadas a essa coisa para que se produza uma opinião acerca dessa coisa.
Precisamos analisar as características de quem emite a opinião sobre a coisa e também a forma como essa opinião foi construída, se foi no calor de uma discussão inflamada, ou no banho-maria da reflexão sem pressa e muito cuidadosa. Cada assunto, tal como moedas ou cubos, possui mais de um lado, e apreender essa coisa na sua integralidade nos instiga a um olhar atento, que pondere acerca das diferentes facetas do objeto em questão.
Mas de que coisa estou a falar? De tudo, ou de quase tudo; seguem abaixo uns exemplos, os mais díspares que minha imaginação conseguiu produzir:
• Seriam os Beatles melhores do que os Rolling Stones ou de que os Jonas Brothers?
• Jiló é bom?
• O aquecimento global é um artefato conceitual criado para se produzir dinheiro, seria uma tragédia ambiental de proporções inimagináveis ou o quê?
• Faço aborto ou tenho a criança? E se a tiver, vou criá-la ou entrego para adoção?
• Compro carro, moto, bicicleta, ou nenhum dos três?
• Meu time merecia ter ganho o campeonato? E o time do adversário?
• O suicídio assistido, tal como existe em alguns países, é defensável?
Opiniões e sentimentos acerca do que quer que seja podem, então, ser entendidos como frutos de nossa história e do nosso jeito de examinar os aspectos do mundo. Pois é, para nos posicionarmos frente a um assunto complexo, e a vida humana é ricamente povoada por eles, precisamos transitar sem pressa em meio ao assunto, examiná-lo por diferentes ângulos, ouvir opiniões variadas, e depois filtrar todo esse material pelas peneiras pessoais do afeto, da razão, da ética e da ciência, para não mencionar outros possíveis filtros.
O que sobrar daí será nossa opinião, a qual deveria estar sujeita a mudar com o advento de novos dados. Estes podem reconfigurar de forma decisiva o contexto, o pano de fundo das relações verbais e não verbais que construímos cada vez que nos relacionamos com a formiga, com um quadro ou com qualquer outro fato da existência humana. É assim que nos qualificamos para criar novas histórias, quebrar dogmas, fazer relações complexas envolvendo fatos e pessoas. Crescer é transformar o mundo e ser por ele modificado.