Relações interpessoais demandam tempo e constância

por Fátima Fontes

Introdução:
“A história se repete de geração em geração. Sempre houve alguma tia que cuidou dos avós, e a história vai se repetindo sem que ninguém questione esse costume. E geralmente sobra para as mulheres da família, ou melhor, para uma delas… a que não questiona e aceita esse papel.”

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(Dulcinéa Cassis, no livro Bola de Cristal e Varinha de Condão, 2009, pp.70). Fui inspirada para este nosso texto por duas fontes, a primeira foi uma linda e tocante cena que presenciei neste feriadão de 15 de novembro: uma neta adulta, ou filha dando um banho de mar, com suas próprias mãos, em uma avó ou mãe.

A felicidade de ambas me tocou: a senhorinha que aparentava bem mais de 80 anos, com visível quadro de perda senil, não falava, mas seus olhos se fechavam e seu sorriso abria a cada regada de água salgada que recebia. A neta/filha regadora também se mostrava absorta do mundo circundante, alheia a qualquer olhar exterior, com muita ternura regava a senhorinha, como fazemos com nossos bebês.

A segunda fonte inspiradora, veio da ressonância em mim do lindíssimo filme: E se vivêssemos todos juntos? Dirigido por Stéphen Robelin, numa coprodução Franco-Germânica de 2010, mas que só nos chegou a circuito Nacional em 12 de outubro de 2012. O que será que levou * 82.888 pessoas a acompanharem essa inteligente comédia com mesclas de drama, em nosso Brasil? Na bem escrita, dirigida e desempenhada trama, dois casais e um amigo solteirão convicto, todos com mais de 70 anos, se veem chocados com o problema de saúde desse amigo solteirão, que impulsiona seu único filho a interná-lo num asilo de idosos.

A partir desse mote, as duras limitações experimentadas pelo envelhecimento e seus desafios são postas em evidência na vida de cada participante da trama. Como modo de enfrentar as dores e conflitos de cada um, surge o convite/ título do filme para que vivessem todos juntos. Convite esse, nada fácil de se fazer e, menos ainda, de se viver.

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Ocorreu-me então, aproveitar o ‘bom contágio’ dessas cenas para que possamos refletir um pouco sobre um cenário mundial e mais que nunca nacional que é o do maciço envelhecimento populacional e de como nos relacionaremos a partir dessa nova e desafiadora realidade.

Já pensamos, com mais profundidade, na nova vida longeva que nos foi ofertada pela biomedicina e conjuntura socioeconômica atual? Mas com que lentes temos nos detido nesse refletir: com as lentes da ‘qualidade física da vida longa’? E sobre a ‘qualidade vincular’ da vida longa, o quanto temos nos debruçado?

Mais do que ‘aceitar ou não’ o papel de cuidadores dos pais/avós, somos estimulados a pensar que nós também estaremos, caso sejamos agraciados com a vida longeva, na posição de sermos cuidados, e seguem as consequentes indagações: Por quem? Em que contexto? Por quanto tempo?

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Vivemos muito mais no século XXI, e agora?

O número de idosos dobrou nos últimos 20 anos, divulgou o IBGE/PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio) em 2011. Na comparação entre 1991 e 2011, o grupo com mais de 60 anos somam 23,5 milhões de brasileiros, mais que o dobro registrado em 1991, quando essa faixa etária contabilizava 10,7 milhões de pessoas.

Ao mesmo tempo, o número de crianças até 4 anos no país, caiu de 16,3 milhões para 13,3 milhões. Que mudanças isso acarreta e acarretará mais ainda nos próximos 20 anos?

Gosto muito de pensar no futuro como um ‘Valor do Amanhã’, como nos foi proposto pelo filósofo e economista Eduardo Giannetti no seu livro que assim se intitula e no qual nos propõe o exercício da busca do equilíbrio entre viver nossos mundos no tempo presente sem perdermos de vista, entretanto, os cuidados que precisaremos ter com nosso amanhã.

Nesta trilha então, voltamos nossos corações e mentes para a questão vincular: hoje (e para o amanhã), temos sido bons cuidadores de nossos vínculos na linha do tempo?

Relações interpessoais demandam tempo e constância. Ponho-me neste ponto a divagar sobre a atual onda relacional, mediada por redes sociais que cria a meu ver, uma ‘falsa sensação’ de encontro entre as pessoas. De verdade, não creio que alguém de quem eu me afastei há 20, 30 anos me seja íntima de algo, quando muito nos remeterá a um momento anterior de nossa vida, mas o afastamento na linha do tempo, e da presença constante em nossas vidas, nos torna estranho ao outro, convenhamos! Fica muita fantasia e certo ‘delírio’ coletivo de que temos miles de amigos, mas em realidade permanecemos na mais absoluta solidão se não cultivarmos nossos laços relacionais.

E agregando a esse ‘compromisso jardineiro’, nosso tempo longevo na terra, uh là là !!! Há que se fazer muita ginástica afetiva e relacional para contarmos com o outro, que dá sentido e alteridade ao nosso eu.  

Vivendo ‘bem’ mais tempo com o outro

Voltemos às nossas fontes iniciais lembram? As cenas da vovó/neta-filha e dos amigos que na trilha cinematográfica decidem viver todos juntos? Pois elas nos guiarão neste momento.

Como coloquei no trocadilho acima: viver bem mais implica em viver ‘bem’, por muito mais tempo com o outro e esse passa a ser nosso desafio longevo. Percebo, como cuidadora de pessoas e seus vínculos há mais de três décadas, a grande dificuldade que carregamos, como humanos vinculares, de sairmos de nosso ‘narcisismo infantil’, egocêntrico e particularista, fato este que nos impõe um viver de ininterrupta insatisfação e cobrança pelo atendimento urgente e completo de todas as nossas necessidades.

Temos perdido, em tempos de vida longa, a paciência para tecer e cuidar dos vínculos: ‘ou é tudo de nosso jeito, ou a fila anda’, é a máxima dos tempos e dos amores líquidos (descartável), como nos assegura o longevo sociólogo Zygmunt Bauman. E isso nos condena ora à solidão, ora às adicções de relacionamento virtuais ultrafrágeis, assépticos, livres de conflitos, pois se algo em você me aborrece eu posso lhe ‘deletar/apagar’ de minha rede virtual; apago todos os seus dados e lhe impeço de ‘teclar/se relacionar’ comigo.

A sabedoria milenar desde tempos muito distantes nos assegura que ‘aquilo que o homem plantar, isso vai colher’. Jesus Cristo gostava muito de se utilizar dessa máxima para nos chamar às responsabilizações do viver. Fica então mais uma vez assegurado o direito de livre escolha: se prosseguirmos egoístas, pouco dados ao exercício minucioso e cansativo de cuidar dos vínculos, envelheceremos em espaços de impessoalidade e vazio afetivo e relacional.

Se, contudo, nos aplicarmos obstinadamente à ginástica do viver bem com o outro, e suas exigências: paciência, domínio próprio, generosidade, tolerância e, sobretudo do amar, como conduta ética de estar e de deixar o outro tranquilo diante de nós; seguramente ‘teremos com quem morar’ afetivamente em qualquer momento de nossas vidas e de sermos ‘regados’ em nossos vínculos, hoje e amanhã.

Cabe a cada um a decisão, como sempre acontece no mundo adulto das escolhas sobre o viver: elas trarão consequências.

Concluindo: cuidar ou não cuidar eis a questão

Continua em nossas mãos o nosso presente e o nosso futuro relacionais, a decisão é de cada um: ou pegamos os instrumentos para cultivo de nossos vínculos ou viveremos e envelheceremos no deserto afetivo.

A tarefa não é tão difícil assim, pois logo que nos dispomos a ser cuidadores de relações, encontramos os outros jardineiros e aí: ‘um mais um é sempre mais que dois’, na matemática dos relacionamentos, não?

Então não desistamos: existimos como espécie, porque somos seres de relação, a qualidade de nosso viver com o outro, entretanto, dará o tom de nosso presente e de nosso futuro, oxalá, longevo!

*Fonte de bilheteria: site ADOROCINEMA, até o fechamento deste texto.

Segue a letra de uma canção antiguinha, simplória musicalmente, mas que em sua singeleza, reforça a proposta dessa reflexão.

Semente do Amor

Almir Rouche

Sim é como a flor
De água e ar, luz e calor
O amor precisa para viver 
De emoção e de alegria
Que tem de regar todo dia

Sim é como a flor
De água e ar, luz e calor
O amor precisa para viver 
De emoção e de alegria
Que tem de regar todo dia

No jardim da fé eu já plantei
Um pé de esperança
No tempo do tempo
Dia, chuva, vento e pensamento
No jardim da vida
Já cresceu e é a consciência
Fruto da vivência
É a consciência é …