Tenho tudo, mas não sou feliz. O que faço?

Mesmo tendo tudo o que consideram necessário para ter uma suposta vida feliz, muitos vivem um sentimento de desesperança e se culpam por isso   

Escolho falar hoje sobre privilégio. Ao lado do tema da desesperança, esse tem sido outro assunto dominante em nossos consultórios. E, como não pensar que os dois temas estão relacionados de forma intrínseca?

Explico: pacientes chegam falando do sentimento de desesperança, tristeza, um humor um pouco depressivo, nada que impeça um funcionamento “adequado” da vida, mas suficiente para tingir de cinza sua cor. Em seguida, em muitos casos, ato contínuo, a pessoa se dá conta do lugar privilegiado que ocupa. Coloca-se então em uma posição na qual falar sobre a tristeza não é possível. Ou seja, uma postura de negação ou repressão desses sentimentos.

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Tenho tudo, mas não sou feliz. E agora?

Então, como entrar em contato com esse sutil humor depressivo, ao mesmo tempo em que reconheço meu lugar privilegiado? Bem difícil, trabalho delicado de manter na consciência os dois sentimentos ou as duas polaridades. Sou privilegiado e vivo, ao mesmo tempo, a desesperança.

E, de que falam nossos pacientes quando falam do privilégio? De saída, falam do lugar objetivo que ocupam. Da saúde, principalmente, da família saudável, da vacina que muitos já tomaram, do trabalho que continuam exercendo. Isto é, da vida que continua acontecendo, apesar de tudo o que ocorre no entorno.

Temos mais de 425 mil mortos, e continuo vivo, o abismo social foi ainda mais acentuado. No entanto, para mim quase nada mudou, mas as pessoas em situação de vulnerabilidade estão sofrendo cada vez mais e nós continuamos aqui.
Estamos aqui, sentados em nossos consultórios, ou em nossos espaços virtuais, seguindo nosso trabalho profundo de discussão e ampliação de consciência, de busca de transformação individual. E, então, como cotejar a questão desse trabalho pessoal, representativo do lugar privilegiado que ocupamos e a questão social? Como falar do individual e do coletivo; de minha desesperança e ao mesmo tempo de meu privilégio?

Um chamado para olhar para o outro

Percebo um chamado cada vez maior a um olhar para o outro, para o coletivo. Não se trata de abandonar o lugar de protagonista, de não aproveitar as possibilidades que temos, de viver e lidar com a desesperança. Ao contrário, trata-se de olhar de forma profunda e verdadeira a tudo isso e, então, fazer uso delas não apenas de forma individual, mas estendê-las, por assim dizer à sociedade como um todo.

Não trabalhamos apenas no individual, seria muito limitado se assim fosse. Um verdadeiro trabalho de transformação inclui, por definição, o olhar para o outro, para fora.

Sinto que ao discutir a questão do lugar privilegiado que ocupamos, nossos pacientes nos desafiam a discutir essa questão. Como cuido de mim e ao mesmo tempo estendo esse cuidado ao outro. Como sustentar os dois polos? Não há como crescer sem olhar para o lado, sem incluir o outro e este desafio tem surgido de forma cada vez mais clara nestes tempos cinzentos, violentos e tão desafiadores que vivemos.

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É psicóloga formada pela PUC-SP, trabalha em consultório com atendimento de adolescentes, adultos e casais. Mestranda em Psicologia Clínica na PUC-SP, analista junguiana formada pela SBPA- IAAP (Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica).