por Aurea Afonso Caetano
Seres humanos contam estórias, desde sempre. A possibilidade de nomear, dotar o mundo de significado, estabelecer ligações complexas entre fatos é, sobretudo, humana.
Outros animais comungam conosco a possibilidade de comunicação verbal: macacos, cachorros, leões, vacas, pássaros, cada um à sua maneira, entre seus pares, troca informações de variados tipos.
Ampliamos essa possibilidade ao fazer isso também de forma simbólica. Olhamos para o céu e “vemos” uma constelação que nomeamos de acordo com nosso olhar e com os mitos da época. Ficamos com medo e contamos uma história através da qual aquela emoção possa ser elaborada. Lemos um livro e aquilo que poderia ser uma desconexa junção de letras torna-se uma incrível arquitetura formando palavras, formando sentenças, formando parágrafos, capítulos e contos, levando-nos a lugares nunca antes imaginados.
Através da utilização dessa possibilidade de expressão, podemos dar significado a nossas vivências, podemos trocar, ampliar a percepção que temos do mundo, dividir experiências, crescer, para dentro e para fora. Tentamos procurar pontos de contato, procuramos estabelecer ligações entre fatos conhecidos e outros desconhecidos.
A aquisição de linguagem levou ao aumento no poder conceitual – palavras podem ser vistas como instrumentos para manipulação da informação. O armazenamento de longa duração de relações simbólicas, adquiridas através de interações com outros indivíduos da mesma espécie, libera o sujeito do presente imediato.
A possibilidade de manipulação dessas relações simbólicas pode corresponder ao florescimento da consciência superior, vista como a capacidade de refletir sobre as próprias experiências ao longo do tempo, como ocorre em seres humanos.
Palavras podem expressar, ou não, a transformação da trama do fio de nossa identidade pessoal, como a possibilidade de ir e vir, costurar, tecer, unir nossos pequenos recortes e formar um todo que tenha um sentido maior.
Reféns ingênuos do sentido da vida
Somos reféns dessa “busca por um sentido maior” ou “busca pelo sentido da vida”. Mas, de forma uma pouco ingênua, caminhamos por aí como se isso não fosse importante. Vivemos cada dia como se o amanhã estivesse garantido, esquecendo a máxima bíblica de que “a cada dia basta o seu cuidado”. Fazemos de conta que ao colocar de lado a óbvia realidade de que o amanhã não é garantido, a imortalidade (ou longevidade) possa dessa forma ser, sim, garantida. Estamos à mercê de nosso desejo de permanência e sabotamos nossa vida aqui e agora ao tentar garanti-lo.
Mas, o imponderável está sempre à espreita. O que dizer daqueles instantes em que pequenos acontecimentos mudam completamente o que costumamos chamar de destino? Como dar conta dos ligeiros desvios que se instalam com pequenas mudanças que nem percebemos? Pensando com os estudos sobre a teoria do caos, variações mínimas dão origem a grandes acontecimentos. E como nossa consciência humana tenta lidar com isso?
Mais uma vez, contamos histórias! Histórias que nos parecem neste momento propor explicações, mostrar sentidos ocultos, trazer um sentido às nossas vivências. Ufa… compreendi, a vida agora parece inteligível, alivio! Mas será?
Jung dizia:
“No fundo, cada tentativa de esclarecimento psicológico é a criação de novos mitos. Dessa forma, apenas traduzimos um símbolo para outro, que depois se enquadra melhor, sem dúvida, na nossa atual constelação do destino individual e na de toda humanidade.”
Buscamos desesperadamente esclarecimentos psicológicos, novos mitos que deem conta do imponderável, do que nos chega sem aviso, daquilo que transforma a ordem das coisas. Em cada uma dessas encruzilhadas há uma morte: o fim de algo que se insinuava como novo, pequenas escolhas, a eleição de um caminho que se configura como a impossibilidade de seguir outro… há sempre uma morte à espreita para que o novo possa se instalar.
Penso que é possível terminar com Drumond; nosso coração é vasto e não será uma rima ou explicação que dará conta de toda sua possibilidade.
“Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração.”
Poema das Sete Faces; C. A. Andrade