Você não precisa passar por isso. Esta simples frase pode nos dizer muito sobre a maneira como nós pensamos, sentimos e experimentamos o mundo à nossa volta. Em geral, ela é usada para justificar atitudes para as quais existem soluções disponíveis e acessíveis.
Por exemplo, se tenho os dentes da frente projetados para a frente e me sinto infeliz com isso, é verdade que eu não preciso passar por isso. Basta fazer um tratamento dentário e corrigir o problema, porque existem soluções para ele. Se uma mulher grávida tem receio do parto natural, também não precisa passar por isso. Basta agendar uma cesariana em uma data próxima ao nascimento da criança e isso se resolve. Se tenho sobrepeso e me sinto descontente com minha aparência, não preciso passar por isso. Basta buscar o apoio disponível para contornar a dificuldade.
A disponibilidade de soluções para qualquer desses problemas ligados ao próprio corpo só está realmente limitada pelos recursos financeiros de cada pessoa. Mas as soluções estão potencialmente disponíveis nas nossas sociedades, desde que você possua os meios para acioná-las. Isso dá ao ser humano uma condição de vida muito específica.
Afinal, não é necessário tomar nenhuma condição física como definitiva. As características biológicas dos nossos corpos tornaram-se matéria-prima moldável de acordo com as necessidades pessoais de cada um de nós. De alguma forma, nós mesmos recuamos para uma dimensão não corpórea, como se existíssemos em uma parte subcutânea, não imediatamente visível ou perceptível. Talvez seja nossa alma, não sei.
Mas como nos distanciamos do nosso corpo, tomando-o como uma argila moldável de acordo com nossas intenções, isso implica que nós mesmos não somos nossos corpos, mas alguma entidade que vive dentro deles, atrás deles – em algum lugar do qual olhamos para os nossos físicos e nos agradamos ou desagradamos. Para nos relacionarmos com nossos corpos como uma matéria-prima moldável, precisamos estar vivendo afastados deles em alguma medida, de tal forma que não somos iguais a eles.
Claro que essa desidentificação, esse olhar para essa parte como sendo um outro de nós mesmos, causa uma série de problemas. O principal é justamente a distância que se criou entre nós e nosso corpo – e que é a causa da insatisfação.
Desacordo: o que queremos ser, o corpo e a liberdade
Se nós fôssemos exatamente o que são nossos corpos, não haveria distância e todos deveriam aceitar o que são – simplesmente porque seriam os seus corpos e não haveria para onde recuar. Como se criou essa distância, se abriu uma brecha para a insatisfação, para o desacordo entre o que queremos ser e o que nossos corpos dizem para os outros o que somos.
Curiosamente, o que chamamos de liberdade é uma fonte constante de falta de acordo entre nós e nossos corpos. Liberdade é o direito de estar insatisfeito consigo mesmo! Liberdade é a distância que inventamos para nos separar do que somos e, assim, exercermos um poder sobre nós mesmos. A liberdade do Século XXI, essa que nos permite exercer um imenso poder sobre nossos corpos, que nos fornece a possibilidade de nos movermos nos bastidores de nossas presenças físicas, é – afinal de contas – uma forma de ter poder.
Mas se a liberdade que estamos vivendo é uma forma de exercer poder não poderia estar ocorrendo que tenhamos transportado para dentro de nós os problemas do poder que existem lá fora?
Quando você decide não precisar passar por isso?
Não há forma de poder mais perversa do que a escravidão, na qual um ser domina o outro completamente. Quando decidimos não passar por isso, quando decidimos impor ao nosso aspecto exterior uma forma que ele não tem, não se trata somente de uma tentativa de escravizar o próprio corpo? Não é essa uma liberdade conquistada à força da dominação do outro? Mas, então, a liberdade que estamos vivendo seria só o resíduo de um sistema que escraviza tudo à sua volta. E não faz sentido, dizer que a liberdade é a escravidão.
Nunca mais tentarei ser fitness com os mesmos olhos…