Na capacidade de se libertar se pressupõe sempre que eu seja capaz, de que eu me imponha sobre algo, de que eu vença. Afinal, tudo é batalha.
Nos habituamos a acreditar que as coisas mais valiosas são aquelas que nós realizamos. Por exemplo, cremos que a liberdade é sermos capazes de decidirmos sobre o que fazer. Ou que ser virtuoso é decidir-se a se comportar de uma maneira ou outra. Todas essas coisas e muitas outras parecem obedecer a um mesmo parâmetro de valor: o mais valioso é aquilo que nós mesmos somos capazes de fazer.
Parece muito óbvio que essa maneira de conceder valor a um certo estilo de vida, a um certo modo de dar valor às coisas, esteja ligado ao egocentrismo. Afinal, sempre se trata de algo que eu faço, que eu realizo, de algo de que eu sou capaz. Em último caso, o que tem valor é tudo aquilo que posso fazer a partir de um certo material inicial que parece ter pouco valor. Esse material pode ser eu mesmo ou outras coisas, mas tudo o que vale é o que cada um pode fazer a partir dele, é a atividade que se realiza sobre ele.
Não interessa se um homem nasce livre, o importante é que a própria noção de liberdade envolve a capacidade de libertar-se, de se tornar livre. Então, não interessa como vivemos, interessa que sejamos capazes de romper com o modo como vivemos para viver de outra forma. Não interessa igualmente se temos conforto, alimento, saúde, amor etc., só interessa se nós mesmos podemos obter alguma outra coisa que não tínhamos e que, por isso, chamamos de felicidade.
Capacidade de se libertar
Toda essa forma de pensar e viver não é apenas egocêntrica, já que tudo depende de que nós somos capazes de fazer e acontecer. Ela também se caracteriza por uma tensão permanente entre o que somos e o que devemos ser. Se o que vale é a transformação que operamos – sobre nós ou sobre o mundo – então tudo está crivado por uma contradição entre o que é e o que deveria ser. Tudo encontra-se tensionado entre o que é e o futuro pelo qual somos responsáveis. A nossa vida toda consiste em negar um estado de coisas e criar outro que ainda não existe. Se trata de deixar nossa marca sobre o mundo, enlarguecer sempre mais o que somos e dominar cada vez mais, estendendo o poder sobre mais e mais coisas.
Viver é uma contínua expansão em direção a um horizonte que se afasta sempre. E se afasta sempre justamente porque a vida é uma tensão entre o que somos e o que devemos ser. E o que devemos ser encontra-se sempre além do que somos. Assim, as vacas de Chernobyl não podem ser livres porque elas receberam sua liberdade por acidente, não porque elas lutaram pela liberdade. Nada que não tenha sido obtido por luta é verdadeiro. Não interessa que elas não tenham mais um dono, que não sejam mais expropriadas por outros seres que levam seu leite e matam seus filhos. Não interessam que elas possam ir por aí sem horários e sem serem guiadas por outras necessidades que não as suas próprias. O que, na nossa concepção usual, as impede de ser livres é que elas não lutaram pela liberdade, não a tomaram de alguém, não conquistaram.
Então, a vida é luta, um enfrentamento permanente contra alguma coisa, interna ou externa, mas sempre uma guerra. Se trata sempre de que eu seja capaz, de que eu me imponha sobre algo, de que eu vença – afinal tudo é batalha.
Mas e se as vacas de Chernobyl forem realmente livres? E se elas tiverem recebido gratuitamente uma liberdade verdadeira através do acidente radioativo? E se a vida for a capacidade de receber e não de conquistar?
Afinal, todos nós recebemos muito, não importa no que acreditamos. Por exemplo, mesmo um ateu convicto sabe que recebeu uma vida de outros seres. Mesmo um cético sabe que ganhou oxigênio e os pulmões para respirar, o sol para aquecer e admirar, o oceano para olhar a imensidão móvel etc. E se o importante for ter a capacidade de usufruir de todos esses dons para os quais, inclusive, a luta não faz nenhum sentido? E se a felicidade for apreciar? E se a liberdade for aceitar o que nos é oferecido sem que tenhamos que lutar?