A solidariedade contra o comércio

Quando cada um possui as habilidades necessárias, está apto a não ser um miserável, porque pode retirar tudo o que precisa da natureza para sobreviver. Isso, de certo modo, é “anticomercial”. O comércio é o reino da pobreza universal; entenda…

Algumas observações que à primeira vista parecem uma má compreensão de determinada situação podem se mostrar muito esclarecedoras. Assim ocorreu, por exemplo, durante a vingança da natureza contra o conjunto de nossas (humanas) intervenções no Rio Grande do Sul. O Governador daquele Estado disse que as doações poderiam prejudicar o comércio local. Ele imediatamente se desculpou pela observação que também pode ser colocada na conta da pressão exercida pelos estragos e mortes provocadas pelas enchentes.

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 Seja como for, o interessante é perceber que o Governador tem toda a razão – antes de se desculpar. A solidariedade dos brasileiros e suas doações prejudica mesmo o comércio gaúcho. Na verdade, a solidariedade de qualquer ser humano com outro prejudica as relações comerciais.

 Alguns estudiosos já destacaram que as sociedades tradicionais não eram sociedades da carência, da pobreza. Trabalhava-se algumas poucas horas por dia e isso era suficiente para manter a vida própria e de sua família. Alguns sugerem que essas sociedades eram, na verdade, sociedades do lazer, justamente pelo tempo livre de que seus membros gozavam.

Em muitas delas não se tinha a noção de propriedade privada e, dada a impossibilidade de armazenagem longa de mantimentos, era comum a divisão de bens de consumo imediato. Além disso, como o nomadismo era a regra, não fazia sentido a posse de bens que durassem muito. Esses, como se sabe, demandam uma maior quantidade de trabalho para serem produzidos – o que não faz sentido se as pessoas devem abandonar tudo o que possuem ou levar consigo.

 Uma das grandes invenções modernas é a produção de bens duráveis para o comércio em escala industrial. Isso produziu a especialização ou a perda de habilidades múltiplas em benefício de uma única. Ao contrário de fazer tudo o que era necessário para a sua sobrevivência com os recursos locais disponíveis e de curta duração, cada um teve que limitar-se a produzir uma única coisa durável e com recursos que podem vir de outras partes.

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Com a durabilidade e a especialização não fazia mais sentido abandonar as coisas úteis. Primeiro porque elas não podiam ser facilmente produzidas porque exigiam mão de obra especializada. Depois porque elas duravam muito tempo. Assim, certamente essas coisas duráveis exigiam que seus donos fixassem moradia porque não havia como levá-las por aí nas costas. Talvez o processo tenha sido mais complexo do que desenho aqui e até tenha ocorrido em uma lógica invertida: as pessoas se fixaram primeiro para depois terem coisas duráveis e não portáteis.

Seja como for, quando cada um possui as habilidades necessárias, está apto a não ser um miserável porque pode retirar tudo o que precisa da natureza para sobreviver. Quero dizer, com isso, que a pobreza é uma invenção recente, moderna.

Relação entre comércio e pobreza 

Afinal, se não há pobreza, também não há necessidade. A pobreza é o império da necessidade. O pobre é um necessitado. Se uma pessoa não tem habilidades ou coisas, então é pobre. Os seus limites são óbvios e sentidos diariamente pelo corpo. O comércio é a tentativa de suprir as necessidades – de todos os que são pobres. Seja porque não possuem aquilo de que necessitam ou por não terem as habilidades para as produzirem.

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Assim, sem a pobreza não há comércio porque ninguém teria necessidades não supridas. O comércio só faz sentido se há pobreza – transitória ou permanente. É claro que se a pobreza é estrutural, fixa, o comércio possui a garantia de que as necessidades não acabarão nunca. O paraíso do comércio é a pobreza durável, permanente, renovável. Por isso, o Governador do Rio Grande do Sul tinha toda razão antes de se desculpar. A solidariedade, a empatia, a divisão dos bens entre as pessoas, o sentimento de irmandade e amor pelo próximo, tudo isso prejudica o comércio local – em qualquer parte do mundo. O comércio é o reino da pobreza universal.

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie