A dimensão existencial do vinho

Por que o vinho é um ser de aço? Entenda como a produção do vinho na atualidade é um espelho do nosso modo de viver.  

Aquilo que nós consumimos pode ser muito elucidativo sobre quem somos. Afinal, para ficar no básico, tratam-se das coisas que preparamos para saciar nossas necessidades mais urgentes – a fome, a sede, o sono. Não se trata somente de que tipo de coisas nós lançamos mão para garantir nossa sobrevivência mas, talvez mais importante que isso, de como nós as produzimos. Não vou me referir aqui aos processos produtivos como os economistas o fazem, mas para tentar entender o que esses processos dizem de nós mesmos. Para isso, vou utilizar aqui o exemplo do vinho.

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O vinho tornou-se uma mercadoria vendida em grande escala, como quase tudo o que nós consumimos. O que poucos sabem é que esse produto disponível nas nossas prateleiras é um vinho de aço. Me explico.

O processo original de produção do vinho consiste em uma série de etapas que demoram um tempo considerável – por volta de um ano. Para obter o produto final era necessário uma combinação de “uvas e paciência” já que a separação de elementos indesejáveis e a cura definitiva só podiam ser obtidos pela passagem lenta do tempo.

Digamos que nesse processo de preparo se exigia um respeito pela dimensão temporal a que todos nós estamos submetidos. Qualquer aceleração do processo levaria ao comprometimento da qualidade do produto final ou simplesmente a sua perda. Claro que, em função desse processo de lento amadurecimento do vinho, ele não poderia ser produzido em larga escala, já que isso implicaria em enormes quantidades de matéria em transformação a serem estocados. Ou seja, a produção daquele vinho subordinado ao tempo o torna um produto que não se adequa à produção em larga escala. Até porque esse mesmo tempo estrangula o processo de produção tornando o vinho um produto raro, especial, dotado de uma certa aura artesanal ligada ao seu local e às pessoas que o produzem.

O mundo físico, humano oscilante, do vinho

Com essa subordinação ao tempo do amadurecimento, o vinho liga-se espacialmente a um lugar de origem, a um regime de produção, às características do solo, do clima e das pessoas que o produzem. Ele é um produto conectado ao ambiente em que é produzido, carreando consigo um mundo físico e humano oscilante para o interior das garrafas. No mínimo, podemos dizer que seu sabor variava de ano a ano.

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Mas há o vinho do mercado, aquele que não se subordina à dimensão do tempo, o vinho criado pela lógica tecnológica do mercado, pela aceleração do fluxo de capitais, pela rentabilidade e pela tentativa de domínio sobre uma parcela fixa dos consumidores.

Para que esse vinho seja produzido é necessário que ele se liberte do tempo. Para isso, se lança mão de processos químicos de aceleração dos processos de maturação, pela correção dos níveis de álcool e açúcar. Consequentemente, também é necessário que ele se liberte do clima através dos sistemas de controle ambiental, irrigação e drenagem. Para que ele se liberte das pessoas é necessário que elas o toquem o mínimo possível. E isso se consegue pela mecanização, pelo criação de rotinas impessoais que impedem que características psicológicas e físicas dos (agora) funcionários contaminem o produto.

O vinho produzido em grande escala é um produto industrial, um ser de aço

Por que o vinho é um ser de aço

O vinho de mercado ideal é um resultado racional, livre de contingências, de variações de toda ordem. Ele não se subordina à ordem do tempo, nem ao fluxo inconstante do clima, nem ao humor oscilante dos homens. O vinho produzido em grande escala é um produto industrial, um ser de aço, duro e incorruptível como a inflexibilidade da rotina que o produziu. Esse vinho não repousa à espera de transformações interiores, ele é administrado para que se chegue exatamente ao fim desejado.

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A arrogância impaciente de não respeitar o ritmo das transformações

 O que me interessa aqui é pensar no significado que a alteração do processo produtivo do vinho produz. Não se trata somente de que essa mutação ocorreu em função de uma espécie de arrogância impaciente de nossa parte que se nega a aguardar que as transformações ocorram no seu próprio ritmo. Se trata também de que esse ritmo imposto volta-se permanentemente contra nós. Afinal, nessa mutação que gerou o vinho de aço, o trabalho tornou-se uma rotina ansiosa que não admite delongas nem variações humanas.

O controle de todos os aspectos produtivos tornou-se uma cadeia que nos ameaça com prejuízos de aparência ameaçadora, um diabo que nos traz miséria e fome quando não é atendido. O peso da seriedade do rendimento financeiro obrigatório fixou as regras do prazer produtivo humano. Porque, afinal, nós somos seres que produzem. Mas nós não deveríamos estar produzindo bens para saciar as necessidades uns dos outros? Por que terminamos aqui, com esse grande sistema que não se ocupa com as necessidades dos humanos? Para quê fazemos vinho de aço? Alguém aprecia seriamente o sabor metálico a esse ponto?

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie