A decepção com pessoas está relacionada à narrativa que cada um imprime à sua história de vida; entenda
Nossa vida é uma narrativa que contamos aos outros, mas também a nós mesmos. Tudo o que dizemos ou fazemos vai se consolidando e dando forma ao que nós chamamos de minha vida. Assim, é natural que as outras pessoas desenvolvam expectativas a nosso respeito. Quando fazemos algo fora desse campo de expectativas, surpreendemos a todos. Pode ser tão grande a mudança de atitude em certos casos que muitos podem não acreditar que fomos realmente nós que agimos assim.
Isso deixa claro que todos nós seguimos um fio narrativo para contar a vida dos outros ou a nossa própria para nós mesmos. Tudo o que sai desse campo de possibilidades é visto como suspeito ou simplesmente desacreditado. O que vivemos no passado, o que já fizemos e aquelas coisas nas quais acreditamos vão ditando o ritmo das possibilidades futuras. O que podemos fazer, pensar e sentir hoje é definido em grande medida pelo que já fizemos, pensamos ou sentimos no passado.
Decepção com pessoas: contradizer expectativas é um forte imperativo
Claro que ninguém é um prisioneiro trancado dentro do seu passado, mas contradizer as expectativas próprias ou dos demais implica em uma forte disposição para decepcionar ambas as partes. De fato, quando fazemos algo fora do campo de expectativas decepcionamos outras pessoas que jamais esperavam que agíssemos assim. Mas também decepcionamos a nossa própria narrativa interna – o que parece mais difícil.
Não se trata apenas de que cada um de nós narra uma vida para si mesmo enquanto vive. O fato é que não se vive sem rumo. A narrativa que vivemos vai sempre em uma certa direção e não em qualquer direção. A consistência interna de nossa narrativa é um critério a que todos nós nos submetemos, queiramos ou não. Imagino que uma narrativa existencial guiada pela falta de consistência seja o que chamamos de loucura: uma espécie de possibilidades sempre em aberto, como um horizonte sem constrangimentos…Puxa, parece que a loucura não é algo tão ruim assim, vista por esse lado. Mas essa não é minha direção aqui.
A narrativa mais importante certamente é a que contamos para nós mesmos. Todo mundo mente, todo mundo finge um pouco – mesmo que seja para ser cordato ou educado. A narrativa voltada para os demais possui certos traços de espetáculo, de representação teatral que não podem ser apagados. Afinal, sabendo que o que fazemos está sendo observado pelos outros, é razoável pensar em fazer coisas que possam causar determinados efeitos que nos interessam. Ou seja, sempre estamos representando algo, sempre desejamos gerar determinados efeitos em nosso público e isso constitui uma parte fundamental da maneira como vivemos.
Mas esse tipo de ação interessada nos efeitos sobre o público não faz sentido para nós mesmos, porque não nos enganamos sobre nós – já que sabemos que estamos representando. Então a narrativa que produzimos para nós mesmo não parece ser afetada pelo efeito teatral ligado ao público externo. Essa narrativa íntima seria a verdadeira, já que ela parece escapar do efeito teatral?
Você é capaz de abandonar o personagem?
A partir daqui, só tenho problemas para oferecer. Longe dos holofotes, da maquiagem, do figurino e dos gestos ensaiados somos capazes de contar uma narrativa convincente para nós mesmos? Depois de anos a fio representando, tentando ser aceitos pelos demais, se esforçando para sermos convincentes e consistentes, teríamos ainda condições de abandonar o papel em que nos esmeramos tanto? Poderia um ator abandonar o personagem depois de tantos tempo vivendo e sentindo somente aquilo que pode ser aceitável para os demais atores?
E se eu sei que os outros são atores como posso considerá-los como uma base para minha própria narrativa – eles que olham para mim como seu público? A nossa vida não seria, nesse caso, apenas um jogo de espelhos em que o que representamos só reflete o que os outros representam?