Dependência química: como lidar com a recaída de ex-presidiário

por Danilo Baltieri

"Sou ex-presidiário e por causa do vicio das drogas cumpri 10 anos por assalto. Estou há um ano na rua e novamente tive a fraqueza de voltar a usar e não consigo parar… fico angustiado, nervoso, etc. Graças a Deus tenho emprego registrado, mas todos os meus companheiros de trabalho usam. Estou sofrendo demais! Mato um leão por dia para ficar limpo. Estou há três dias sem usar. Não sei até quando vou aguentar. Será que tem algum calmante para tirar pelo menos a ansiedade?"

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Resposta: Esta pergunta merece comentários sobre dois aspectos: a interface crime e drogas, e a necessidade de tratamento especializado dentro e fora do sistema penitenciário.

A associação entre o uso inadequado de álcool e outras drogas com a violência tem sido descrita por célebres criminologistas ao longo da história. De fato, uma das principais complicações advindas do consumo de substâncias psicoativas são os problemas com a Justiça. Vários estudos têm apontado o relacionamento estreito entre o consumo de álcool e outras drogas com o comportamento violento. Além disso, a gravidade da dependência tem sido associada com o maior risco de reincidência criminal.

Segundo alguns autores, uma das crenças mais comuns no meio jurídico é de que criminosos, em função do constante descumprimento das regras sociais, acabam por ocupar-se, também, do uso de substâncias psicoativas. Já no meio médico, a crença predominante é de que a maioria dos agressores usuários de álcool e de outras drogas são, na realidade, indivíduos que fazem uso inadequado de substâncias psicoativas e, em função de abuso ou dependência, envolvem-se em atividades ilícitas, as mais variadas.

O consumo inadequado de bebidas alcoólicas e outras substâncias, especialmente considerando os episódios de intoxicação, representa um saliente risco para a perpetração de atos violentos, incluindo homicídios, crimes sexuais e violência intrafamiliar. No entanto, os estudos sobre o relacionamento ‘crime – drogas’ têm sido bastante heterogêneos principalmente no que concerne à definição de uso nocivo, síndrome de dependência ou simplesmente episódio de intoxicação.

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Na verdade, existem crimes diretamente relacionados com o consumo de bebidas, como por exemplo: dirigir embriagado e perturbação da ordem pública (quando intoxicado). Entretanto, associar causalmente e unidirecionalmente um crime violento (tal como homicídio, roubo e estupro) unicamente ao uso nocivo de bebidas parece pouco sustentável.

Consumo de bebidas alcoólicas e crime

Há uma relação complexa entre o consumo de bebidas alcoólicas e o crime. Pesquisas têm apontado fatores que podem explicar as possíveis associações entre o consumo de drogas e violência. Na verdade, o comportamento violento pode ser uma consequência esperada ou não do consumo de drogas.

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Os três fatores de conexão “álcool-crime” podem ser assim resumidos:

a) o próprio efeito farmacológico do álcool;

b) o consumo de álcool pode ser usado pelo agressor como uma “desculpa” pelos comportamentos aberrantes e violentos próprios;

c) a existência de outros fatores que favorecem tanto o consumo de bebidas, quanto o comportamento violento, como certos aspectos do temperamento do indivíduo, os quais podem somar-se para gerar a conduta indesejável.

Apesar das tentativas de categorizar as diversas formas de conexão entre consumo de bebidas alcoólicas/drogas e crime ou comportamento violento, múltiplas variáveis devem ser consideradas durante as avaliações. O comportamento agressivo associado com o consumo de substâncias tem sido muitas vezes atribuído aos efeitos farmacológicos das drogas que diminuem a inibição comportamental. Contudo, embora haja relacionamento entre drogas e violência, a maioria dos indivíduos não se torna agressiva quando intoxicada. Uma explicação para isso é que apesar dos efeitos farmacológicos das bebidas alcoólicas e de outras substâncias, muitos dos indivíduos que se tornam agressivos quando intoxicados parecem ser mais predispostos a comportar-se de maneira violenta e/ou apresentam outros fatores de risco situacionais. Dentre esses fatores de risco situacionais, podemos citar: “provocação” de terceiros, situações de “ameaça” real ou interpretada, “frustração”, “pressão dos pares” para o comportamento agressivo, “traços de personalidade”, etc.

Também, é oportuno considerar que o relacionamento entre uso de substâncias psicoativas (de uma forma geral) e violência deve ser verificado dentro de um modelo comportamental complexo. As categorias listadas abaixo identificam os principais fatores atribuídos ao comportamento violento, com especial atenção ao relacionamento álcool/drogas/crime:

Influência dos antecedentes do perpetradoro usuário

a) antecedentes pessoais e familiares: abuso físico/sexual, negligência, inadequadas experiências de socialização, agressões durante a infância e adolescência;

b) antecedentes culturais: valores adquiridos, crenças e normas internalizadas.

Condições recentes do usuário:

a) efeitos farmacológicos da substância consumida: prejuízo cognitivo, labilidade (oscilação) emocional, agitação psicomotora, fissura ou “craving”, irritabilidade;

b) condições sociais: falta de controle social, desorganização familiar, falta de oportunidades de emprego, educação;

c) condições econômicas: necessidade financeira, falta de recursos financeiros para angariar a droga, dívidas;

d) situacional: ambiente, local de moradia, convivência com outros delinquentes (“vizinhança”).

Apesar da importância dos múltiplos aspectos psicossociais e neurobiológicos na gênese do crime, o consumo inadequado de álcool e de outras drogas, seguramente, representa importante fator complicador, embora muito dificilmente o único causador direto.

Dessa forma, aceita-se que o uso inadequado de álcool e de outras drogas está relacionado ao crime. Essa associação nem sempre é de fácil constatação, porque além de boa parte dos estudos serem retrospectivos baseados nos relatos dos próprios agressores, outras variáveis nem sempre são incluídas nas pesquisas. No entanto, outros autores referem que, mesmo quando variáveis sóciodemográficas (sexo, status socioeconômico, estado marital) e psiquiátricas (traços impulsivos e de personalidade) são controladas/avaliadas, o consumo inadequado de bebidas alcoólicas continua fortemente associado com a perpetração de violência física.

Em uma amostra inglesa de 1.594 homicídios ocorridos entre os anos de 1.996 e 1.999, 42% apresentaram história de uso de álcool e/ou drogas por parte do agressor e/ou da vítima. Os agressores eram geralmente homens, com história de reincidência criminal, apresentavam antecedentes pessoais de comportamentos violentos, transtornos de personalidade e contato prévio com serviços de saúde mental. De fato, pessoas com diagnóstico de transtorno de personalidade do tipo antissocial costumam apresentar consumo precoce inadequado de álcool e de outras drogas, além de problemas com a Justiça.

Indivíduos com graves comportamentos antissociais na infância costumam evoluir com falhas acadêmicas, relacionamentos com pares delinquentes, uso de álcool e outras drogas, sintomas depressivos, comportamento sexual de risco e dificuldades para manter empregos. Um processo contínuo de falta de oportunidades e de recursos financeiros ou sociais, bem como do consumo de substâncias contribuiriam para a manutenção das atividades ilícitas durante a vida adulta, estabelecendo um ciclo devastador. Além disso, agressores reincidentes tenderiam a se manter em situações de risco, incluindo associação com grupos delinquentes, o que reforçaria comportamentos desviantes, como o uso de substâncias psicoativas. A combinação entre comportamentos antissociais e uso de substâncias contribui para a manutenção de um “estilo de vida” criminoso.

Tratamento

O tratamento adequado e especializado dos problemas mentais e físicos decorrentes do consumo inadequado de substâncias psicoativas deve ocorrer dentro e fora do sistema penitenciário. Trata-se de fato de proposta coerente e viável tanto para a melhora da qualidade de vida do apenado e reinserção social, quanto para a redução da reincidência criminal.

Precisamos lembrar que o tratamento de uma doença é um direito humano básico e deve ser realizado com todo respeito ao seu portador.

Todavia, ao redor do mundo, existem poucos projetos de tratamento para os condenados dependentes químicos infelizmente.

De acordo com alguns autores, a intervenção terapêutica penitenciária apresenta várias limitações estruturais, derivadas do próprio cenário onde ela acontece como superpopulação, clima social carcerário ou a própria violência na prisão. Para esses autores, qualquer tratamento clínico para a ressocialização do apenado durante o cumprimento da pena em penitenciária pareceria algo insatisfatório, visto que o problema da reinserção tem um conteúdo funcional que transcende à mera e parcial faceta clínica, reclamando um atendimento às outras necessidades do condenado, relacionadas aos meios social, familiar e de trabalho.

Dessa forma parece, para alguns autores, que a intervenção terapêutica no apenado que se encontra fora da prisão, ora por gozar de penas alternativas, ora por desfrutar do regime de “prisão aberta”, ora por se encontrar em livramento condicional ou por ter cumprido o período de prisão exigido por lei, apresentaria melhores resultados, gerando e mantendo novos padrões de conduta positiva nos condenados.

Contudo, outros autores referem que a prisão pode ser um importante fator de motivação para o tratamento da dependência química, em função das consequências negativas atuais do consumo prévio de drogas.

O tratamento dos apenados pode realmente contribuir para evitar a reincidência criminal e este argumento por si só deveria servir de alicerce para projetos concretos de intervenção dentro e fora das penitenciárias. Naturalmente, quanto maior a conexão entre as equipes que realizam o tratamento dentro da instituição penal e as equipes que desenvolvem o tratamento fora dela, maior o sucesso terapêutico.

Há várias formas de tratamento para dependentes químicos, sendo que as principais são psicoterapias, tratamento em regime de ambulatório, tratamento em regime de internação, grupos de mútua ajuda e tratamento farmacológico.

Tendo em vista a heterogeneidade da população que padece de transtornos mentais relacionados ao consumo de substâncias psicoativas, o tratamento deve ser adequadamente planejado para cada paciente. Para as dependências de algumas substâncias, a utilização de medicações comprovadamente eficazes deve ser criteriosamente administrada.

Também existem intervenções que não se limitam ao dependente, mas envolvem seus parceiros e familiares, como terapias de casal, de família e grupos de mútua ajuda (Alcóolicos Anônimos, por exemplo).

Dessa maneira, uma proposta de tratamento ambulatorial para apenados dependentes químicos, motivados para tal, parece ser de grande importância social, visando à ressocialização dos condenados.

Você deve imediatamente procurar tratamento especializado. Lembre-se: é um direito seu. Existem vários ambulatórios especializados, centros de atenção psicossocial, comunidades terapêuticas e até mesmo comunidades religiosas dispostas a ajudar pessoas com problemas relacionadas ao consumo de substâncias psicoativas. Não perca tempo.

Dependência química: como lidar com a recaída de ex-presidiário

por Danilo Baltieri

"O senhor acha possível que alguém que tenha fumado cigarro e maconha durante dez anos, chegando a 30 cigarros e 10 baseados por dia, conseguiria reduzir/controlar essa compulsão e retornar ao uso recreativo e esporádico, por exemplo, um baseado à noite e três cigarros?"

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Resposta: Como eu tenho reiterado muitas vezes nesta seção de respostas, NÃO EXISTEM QUAISQUER NÍVEIS SEGUROS de consumo dessas substâncias. O ideal é a abstinência completa de toda e qualquer substância psicoativa. O paciente dependente de alguma substância psicoativa (álcool, maconha, cocaína/crack, heroína, nicotina, etc) deve procurar profissional especializado no tratamento da dependência química objetivando a abstinência completa.

Existem casos, porém, em que os usuários não desejam cessar completamente o uso de determinada substância, mas manter um uso “controlado” das mesmas. Isso é tremendamente arriscado para os indivíduos dependentes de substâncias, já que o padrão de consumo prévio de drogas é frequentemente reinstalado, quando o individuo tenta fazer um “uso controlado”.

A natureza da dependência química caracteriza-se, dentre vários sintomas e sinais, pela perda do controle diante do consumo dessas substâncias; logo, a proposta de um “uso controlado” em alguém onde a doença “Dependência Química” esteja instalada é de difícil sustentação.

Administração de consumo de nicotina na forma de chicletes funciona?

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Apesar disso, estudos que tratam sobre esse assunto (dependência de nicotina), mais propriamente sobre redução de danos, têm enfatizado que entre aqueles indivíduos dependentes de nicotina e que não conseguem (ou mesmo não desejam) cessar completamente o consumo da substância, a administração de nicotina na forma de chicletes por tempo maior do que o usualmente prescrito durante o tratamento de reposição, poderia ser uma escolha razoável. Um dos sérios problemas, no caso dos dependentes de nicotina, é a utilização da substância na forma fumada e para esta forma de uso é difícil qualquer proposta de “controle”. O hábito de fumar é extremamente lesivo e deve ser combatido.

Maconha e nicotina: terapêutica e medicamentos

Existem muitos tratamentos comprovadamente eficazes tanto para o tratamento da dependência de maconha quanto para o da dependência de nicotina. Embora, até o momento, não existam quaisquer medicações comprovadamente eficazes para o tratamento específico da dependência de cannábis, existem medicações comprovadamente eficazes para o tratamento e manejo da dependência de nicotina.

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A taxa de abstinência de nicotina aumenta à medida que o tratamento é adequadamente individualizado e a associação com uma medicação comprovadamente eficaz é realizada. Enfatizo aqui que, embora não haja medicações comprovadamente eficazes para o tratamento da dependência de cannábis, existem formas eficientes de tratamento dessa condição.

No entanto, o primeiro passo para a realização desses tratamentos é o desejo persistente em abandonar o uso de qualquer uma dessas substâncias. Não existe fórmula mágica. Cada caso precisa ser avaliado por especialista e a proposta de abordagem e tratamento deve ser realizada a partir de então.