Depois de ficar muitos anos sem beber, a ideia seria tomar somente uma ou duas taças de vinho, e não tomar um porre
E-mail enviado por um leitor:
“Até há 20 anos atrás era um bebedor pesado. Mas a partir dessa época, fui espaçando os porres (binge drinking = beber pesado), que se transformaram em seis porres por ano mais ou menos. Até que de 39 meses para cá, fiquei totalmente abstêmio, sem pôr uma gota de álcool sequer na boca. No entanto, surgiu uma oportunidade de marcar um jantar, no meio do mês que vem, com um ‘crushizão’. A mulher é sommelier e meio que parece fazer questão de tomar um vinho nesse jantar. Claro que se eu disser que não vou tomar, ela vai ‘entender…’ Mas penso disso ser um balde de água fria no que poderia ser uma boa noite de paixão regada a sexo… pois o vinho é um elemento muito importante na vida dela. Por outro lado, me sinto um ser ‘imaculado’ por conta desse longo período de abstenção, que vejo quase que como uma ‘façanha’. Cheguei a pensar em tomar uma ou duas taças, que é o recomendado pelos médicos. Mas confesso que estou perdido e em conflito. O que faço?”
Resposta: O retorno ao uso de bebidas alcoólicas depois de tempos de abstinência e mudanças comportamentais comumente é conhecido como recaída. No caso de uma recaída promover rapidamente o mesmo padrão de uso nocivo de bebidas alcoólicas de outrora, chamamos de reinstalação. Curiosamente, os mesmos gatilhos e situações associados com as recaídas e lapsos entre bebedores sob tratamento são os vilões no processo de reinstalação do problema meses ou anos após o último gole: fatores ambientais (locais recheados de possibilidades para beber, novos parceiros usuários) e internos (estresse, isolamento, sintomas ansiosos, sensação de estar plenamente curado). De fato, os estímulos carregados com o potencial recompensador da bebida podem precipitar comportamentos de busca pelo álcool ou mesmo criar “trapaças” para que o consumo ocorra.
De onde vem a motivação para voltar a beber depois de muitos anos?
O desenvolvimento da Síndrome de Dependência de Álcool é um processo bastante complexo e dinâmico. Muitos fatores neurobiológicos e ambientais influenciam a motivação para beber. Em uma dada situação na qual o indivíduo está diante da possibilidade de voltar a beber novamente, ele, de forma automática ou mesmo reflexiva, sobrepesará os efeitos prazerosos e reforçadores do uso (tais como a euforia e redução da ansiedade) com os efeitos adversos do uso e a possibilidade de retorno ao quadro passado.
As memórias associadas tanto com os efeitos recompensadores quanto com os efeitos deletérios, regadas aos estímulos ambientais presentes, influenciarão a tomada da decisão e a tentativa de evitar.
Quem teve problemas com bebidas alcoólicas é mais propenso a ceder aos estímulos para voltar a beber
Indivíduos com história de problemas com o uso de bebidas alcoólicas estão mais propensos a ceder aos estímulos apontados acima do que bebedores regulares não problemáticos. De fato, regiões cerebrais de pessoas com história de uso problemático de álcool, tais como córtex cingulado anterior, núcleo accumbens esquerdo e córtex órbito-frontal esquerdo, são mais amiúde ativadas, quando na presença dos estímulos relacionados com o álcool.
De fato, a região cerebral conhecida como núcleo accumbens tem recebido considerável atenção como um dos principais substratos neurais que medeia o processo de recompensa cerebral. Esta região recebe projeções dopaminérgicas, quando diante dos estímulos para beber.
O giro cingulado tem sido associado com a saliência das informações motivacionais e emocionais recebidas do meio externo. Desta forma, pode ter um papel na intermediação entre o estímulo recebido e as expectativas positivas do usuário diante do consumo de bebidas alcoólicas. Alguns autores têm sugerido que esta região cerebral está associada com a expectativa individual pelo prazer ou hedonismo.
O córtex órbito-frontal está envolvido no processamento das informações sobre estímulos reforçadores e aversivos, tendo extensivas associações com as estruturas límbicas subcorticais (circuitaria da recompensa cerebral). Disfunções nesta região estão correlacionados com prejuízo no controle inibitório, o que significa continuado uso de substâncias apesar das consequências nocivas.
Posso voltar a beber somente uma ou duas taças de vinho?
Não acho que seja correto consigo mesmo um teste como esse. Reflita antes de agir!
Na minha prática clínica diuturna, eu o aconselharia a conversar com a sua parceira e explicar a situação. Como você mesmo disse, “ela vai entender”. Também, na prática clínica, dentre vários fatores ambientais que colaboram para as recaídas destaco o “flerte”. O alcoolista em remissão completa tenta impressionar, aderir aos costumes da sua nova parceira, evitando revelar seus problemas pessoais.
Você conta uma história de beber pesado e de problemas associados. Você também conta que tem superado há tempos este problema. Não acho que seja correto consigo mesmo um teste como esse.
Reflita antes de agir !!!
Boa sorte!!!
Atenção!
Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.