por Fátima Fontes
Aqui estamos outra vez neste espaço reflexivo, para mim muito enriquecedor e desafiador, no qual nos debruçamos sobre o complexo mundo das inter-relações.
Fazendo parte do espaço de troca inter-relacional, fui instigada por um de nossos leitores a conversar um pouco sobre o ponto de equilíbrio entre o ‘nós’ e o ‘eu’. Encarei a proposta, pois ela vai nos ajudar a caminhar muito nesse passeio proposto nesta coluna: da vida com o outro.
E como me mantenho muito conectada com os sons ao meu redor, escutei alguns dias atrás a canção do Jota Quest Perto de Mim, que de cara me inspirou a abrir a nossa reflexão. Afinal, estou cada vez mais certa de que podemos sim estar com o outro, sem nos perdermos de nós mesmos.
Entre o mundo do ‘eu’ e o ‘mundo do nós’: um espaço a completar
Acho sempre importante, ao tratarmos de entre mundos, que recordemos alguns elementos de nosso desenvolvimento humano. Nosso primeiro mundo, aquele que se estendeu do nosso nascimento até por volta dos três anos de idade, foi estudado e entendido pelos teóricos do desenvolvimento como os ‘Anos mágicos da criança’. Neste nosso primeiro mundo, carregado de onipotência e fantasia, pouco entendíamos da realidade; o que nos levava a crer que, se os que de nós cuidavam, nos alimentavam quando tínhamos fome, e nos garantiam algumas proteções quando nos sentíamos inseguros: éramos poderosos, pois desejo e realização de desejo se confundiam em nosso cotidiano.
É esse o movimento que observamos em crianças dessa idade: ela pode tudo (pelo menos deseja tudo), tudo é dela e precisa acontecer como e quando ela deseja. Mas não demora muito e esse paraíso é perdido abruptamente, e isso é marcado em condição sine qua non pela chegada do outro em nosso mundo. Somos ensinados, insistentemente, que devemos e precisamos incluir o outro em nosso mundo para viver socialmente, e vemos assim a brecha entre fantasia e realidade crescer.
Toda a dor inicialmente vivida de ter que viver de outro jeito, fazendo esforços para resolver problemas que surgem frente aos nossos desejos, é ultrapassada pela delícia dos novos saberes e sabores (aliás, essas duas palavras derivam do mesmo verbo latino: sapere), que nos apresentam a um mundo da partilha como espaço de crescimento e não de diminuição.
Mas no novo trilhar da criança que adentra no mundo do nosso, resquícios desse mundo onipotente permanecem, e vemos surgir também formas de ser no mundo, carregadas de um exercício permanente de se sentir superior e deixar bem claro a inferioridade do semelhante. Quem não passou por um desses pequenos abusadores emocionais, que atire a primeira pedra.
Aliás, pedra no sapato, é a dolorosa sensação que vivemos ao nos relacionarmos com pessoas assim, e as reações a partir daí são as mais variadas. Há os mais resilientes (aqueles que tiveram bons tutores de resiliência, ou seja, pessoas da família ou de fora dela que sempre ressaltaram algum valor em nós) que até crescem com as mal querências do caminho. Porém, também, é grande o número dos que virarão emocionalmente tartarugas recolhidas em seu casco. Explico melhor: aquele que se fechará como a tartaruga o faz em seu casco, quando diante de uma ameaça, que apesar de ser uma reação protetora, vai tirar toda a leveza desse tempo de vida, tendendo a gerar um comportamento futuro de muita desconfiança e medo do contato mais direto com o outro.
Vemos assim que dor e delícia nos acompanharão para sempre em nosso viver… com ou sem o outro.
Fidelidade ao amor: uma chave para prosseguir com o outro
Muito me encanta encontrar elos no viver humano. Então é apaixonante escutar uma canção que se coaduna com todo meu aprendizado científico. E é isso que proponho, tal qual Jota Quest, como possibilidade de acharmos uma boa equalização entre o ‘eu’ que somos e da ‘vida além de mim com o outro’: a fidelidade ao amor.
Do que estou falando quando proponho essa fidelização ao amor?
Em primeiro lugar falo de uma busca por nos descobrirmos enquanto seres únicos: Quem somos? O que desejamos ser? O que nos realiza? O que nos constrange? O que nos alegra? O que nos entristece? Pelo que vivemos ou o que dá sentido à nossa vida?
Essa busca identitária pessoal não termina nunca e funciona com um dos pratos de uma balança de dois pratos, que exige que, para que alcancemos o equilíbrio e a boa medida, tenhamos uma distribuição equitativa entre os dois pratos que a compõem.
Mas também falo da busca pela boa aliança com o outro, algo que remonta aos nossos primeiros movimentos onde dividir é somar; e isso se refere à aprendizagem da renúncia narcísica, aquela onde aprenderemos a não achar feio tudo o que não é espelho. Assim descobrimos a riqueza de compartilhar e se envolver com a alegria e a dor do outro, numa corrente contínua de também ter com quem compartilhar nossas próprias dores e alegrias. Esse é o outro prato da balança de dois pratos, que me ajuda a pensar o mundo e a vida por mais de um espectro, como no caleidoscópio, vendo além de mim e de minhas experiências, sem contudo me perder delas.
Mas falo também de uma metáfora que é utilizada pelo sociólogo Zygmunt Bauman: a do Jardineiro na qual o cuidado com o que é meu e com o que é do outro é o grande convite do viver. Isso se contrapõe nos tempos atuais ao retorno da metáfora do Caçador que mata por prazer ou para se alimentar, nem sempre em medida da sua necessidade, já que somos guiados, desde os tempos Modermos e Pós-Modernos a construirmos uma sociedade global de hiperconsumo, onde consumimos por impulso. O Caçador não pensa em realidades complementares, mas em realidades narcísicas e onipotentes (talvez resquícios de sua 1ª onipotência infantil); e não se dá conta de que quanto mais distante do outro ele estiver, mais distante dele mesmo estará.
Considerações finais: amar, amar e amar o fiel da balança
Desejo mais uma vez ter convidado vocês a mais um mergulho no mundo do: nós e nossos vínculos, que pelo título desta coluna já expressa a realidade na qual não existirá o ‘nós’ sem o ‘quem somos’, caso contrário, seria somente o: vocês ou eles. Estamos inseridos e implicados no processo vincular como seres únicos e singulares.
E que aprendamos num exercício permanente a sermos fiéis ao amor: por nós mesmos e pelo outro, como caminho relacional a seguir.
E como não poderia deixar de ser, lá vai mais uma canção para ler e ouvir, como reforço ao colocado aqui.
Mais Perto de Mim
Jota Quest
Quem sabe um dia ainda consiga entender
Que o proibido já não basta pra nós
Um argumento, algo mais
Pra dizer
Que permita desatar nossos nós
Fidelidade ao amor, é sempre estar assim
Se estou mais perto de você, estou mais perto de mim (x2)
Lugar comum pra mim, é algo assim
Onde se trai o sentimento maior
E de repente eu não consigo entender
Se o que passou podia ser bem pior
E sempre quando chego perto de alguém
Eu posso ver se ela me sorriu
Com seu coração
Não me diga que não (não me diga que não!)
Quem sabe um dia ainda consiga entender
Que o proibido já não basta pra nós
Fidelidade ao amor, é sempre estar assim
Se estou mais perto de você, estou mais perto de mim (x2)
Perto de mim!