A tal da “lei do merecimento” não encontrava, de nenhuma forma, sustentação no plano espiritual, chegando a ser tão estranha quanto incoerente.
“Quem faz tudo certo, tudo dá certo” e “quem faz coisas erradas, coisas erradas acontecem”. Teorias que, ao longo de décadas, permearam e permeiam a convicção de muitos. Porém, ao escrever o livro “Quando coisas ruins acontecem a pessoas boas”, o rabino Harold S. Kushner faz uma viagem ao seu mundo interior, a partir do próprio sofrimento causado pela doença rara que seu filho apresentou aos dois anos de idade e que o levou à morte aos 14 anos, com a aparência de um homem de 60 anos.
Desde então, Harold percebeu uma imensa necessidade de reaprender, por meio do Velho Testamento, conceitos e crenças que não faziam mais sentido em virtude do triste acontecimento.
Percebeu que já não conseguia ensinar as mesmas coisas que ensinava e nem acreditava naquilo que ensinava. Sentiu necessidade de revisitar sua convicção espiritual. Onde estava Deus naquela situação? Como Deus se relacionava com aquele sofrimento, justamente com uma pessoa tão inocente – seu filho?
Disse ele: “enquanto eu sofria, a solidariedade das pessoas acabava me atrapalhando, ainda mais porque expressavam conceitos que em nada me ajudavam”.
Lei do merecimento: o que está por trás dela?
A tal da “lei do merecimento” não encontrava, de nenhuma forma, sustentação no plano espiritual, chegando a ser tão estranha quanto incoerente.
É claro, porém, que nossos caminhos trazem consequências – Lei da Semeadura. Semeando vento, colhemos tempestade, mas atribuir a doença a um ato punitivo de Deus, é demais.
Seria uma espécie de justiça vingativa? Ou ainda, de uma justiça Divina vingativa? Tão contraditório…
Atribuir uma relação causal – moral a um sofrimento, a uma tragédia – é tão cruel quanto a tragédia em si.
Outra ideia torta é a de que Deus manda sofrimento para você se aperfeiçoar.
Embora saibamos que o sofrimento faz um indivíduo crescer e tem a capacidade de dissolver os supérfluos da vida – porque colocamos mais atenção às coisas essenciais – achar que o Sagrado promove isso é torná-lo sádico. Atribuir a chegada de um sofrimento como “proteção de coisas piores”, ao meu ver, seria uma concepção equivocada.
Mesmo que algumas coisas ruins – depois que passam – nos tragam coisas boas (como um plano A que não deu certo e você constatou que o plano B era bem melhor) é muito malabarismo dizer que o sofrimento veio de uma vontade divina.
O poder do amparo
A pergunta, neste caso, não seria “por que isso está acontecendo comigo?”, mas: “onde está o meu amparo?”
Há muitas maneiras de relacionar Deus ao sofrimento humano. Harold assumiu o Salmo 121: “Levanto os meus olhos para os montes, de onde me virá o socorro? O meu socorro vem do Senhor, que criou o Céu e a Terra”.
Importante ressaltar que na época em que o salmista revelou sua angústia, nesses montes estavam os deuses que representavam as forças da natureza, eram ídolos. “O meu socorro não vem dos montes, dessas forças estranhas, dos deuses. O meu socorro vem do Senhor”.
O salmista não disse “a minha aflição” vem do senhor. Ele grita: “de Deus vem meu socorro, meu refúgio, socorro bem presente no dia da aflição”.
Nesse tempo atual estamos sofrendo muito. Algumas dores são escancaradas, ruidosas, outras são como desesperos silenciosos.
Propõe Harold: “eleve seus olhos para o monte calvário e ali veja Deus estendendo sua mão e dizendo: estou com você”.
Se não estiver sofrendo nesse momento, expresse sua gratidão, interceda por quem não estiver bem ao seu lado, não deixe que sofra sozinho.
Assim fez Harold S. Kushner, e seguiu adiante…
Vale dizer que este artigo não tem como objetivo estabelecer – ou mesmo impor – uma ideia absoluta, mas refletir sobre o desalento humano sob a ótica da Teologia.
Seguir adiante, neste caso, é encontrar o acalento onde as coisas tendem a ter um sentido muito mais profundo, verdadeiro e perene.
“Toda dor pede para ser curada.
Olho o curso das estrelas
e não tenho dúvidas de quem sou.
Então que me venha agora
o susto das ausências
e das palavras de silêncio,
coisas sem perfume.
Acharei um lugar para elas
no meu jardim.
Construo a paz
quando refaço o caminho de volta.
Paz que, nascendo no coração de Deus,
atinge o coração de todas as coisas.
E embora cheia de rubricas,
vivo da gratuidade e da alegria,
levando a verdade adiante
e me fazendo verdadeira.
Ando cheia daquela compaixão
que diminui a dor de tudo
o que dói demais…
porque olho para os montes
e sinto a incansável delicadeza”.
(Maria do Céu Formiga)