A violência é um paradoxo, de qualquer lado que se veja a questão. Entenda o que a tragédia ocorrida em Petrópolis, por causa da forte chuva, nos ensina sobre um comportamento – social e individual – violento
Os órgãos de imprensa estão cobrindo intensamente a catástrofe ocorrida na cidade de Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro. Com as fortes chuvas que castigou a região, ocorreram vários deslizamentos de encosta e enchentes, matando mais de duzentas pessoas e deixando quase cinquenta desaparecidos até agora.
O mais assustador, entretanto, é a ocorrência de arrastões para promover roubos e saques em meio à destruição, assim que as águas baixaram e permitiram alguma movimentação. Como é possível que, em meio ao sofrimento de centenas de pessoas que tiveram prejuízos materiais e perdas humanas enormes ocorram atos de tamanha violência? Não se trata somente de violência. Se trata de um passo adiante na sua profundidade.
Não quero aqui minimizar o sofrimento histórico daqueles que têm sido considerados como cidadãos de segunda categoria pelo Estado Brasileiro. A falta de capacidade do poder público em absorver a maioria da população dentro do Estado de Direito é uma de nossas características históricas. Então, quem poderia tranquilamente condenar saques durante uma tragédia como a de Petrópolis?
O paradoxo da violência
Parece fácil indignar-se com o extremo de violência cometido por aqueles que não levam em consideração a fragilidade das pessoas afetadas pelos deslizamentos e enchentes. Mas, considerando o aspecto histórico dos problemas sociais no Brasil, sabemos que não é simples pesar os eventos.
Não se trata de legitimar saque e roubo. Se trata de reconhecer que estamos nos tornando incapazes de ajuizar em função da escalada social da violência. Afinal, se uma violência justifica a outra, então uma próxima violência também já está justificada – e depois mais uma. A violência parece ter uma propensão para se alargar infinitamente, de tal maneira que é sempre possível dar um passo adiante, ser um pouco mais violento. Talvez até ser legitimamente violento em função das violências cometidas no passado.
Como o Brasil é um país colonial e escravocrata, as marcas históricas da violência estão espalhadas por toda parte. Seria até mesmo fácil conectar uma ação atual com nosso passado de genocídios, agressões, roubos, expropriações, fraudes – violências de toda ordem. Se é assim, então parece que a violência possui uma propensão a se difundir e se aprofundar, na medida em que os violentados possuem direito a uma violência reparadora.
A violência reparadora é violenta
O problema é que a violência reparadora é violenta. E, por isso, ela gera uma nova legitimação para a próxima ação violenta, de tal maneira que o processo não se encerra, mas se espalha e se aprofunda em função do sentimento de que se trata sempre de uma defesa de violências passadas.
A questão que deveria nos ocupar então é sobre o direito de se solicitar a alguém que sofreu violência no passado que seja capaz de desprendimento para encerrar esse processo. Que sei eu da dor de outra pessoa para solicitar que ela abandone sua disposição de vingança diante da violência sofrida? Que sei eu da violência que será causada a outra pessoa para torná-la legítima?
Se reconheço ou não reconheço o direito à violência termino no mesmo lugar: não tenho capacidade para saber o grau de sofrimento que poderia ser infringido a um outro ser humano. Assim como não me parece razoável reconhecer o direito à violência, também não parece possível solicitar que alguém baixa a guarda e absorva a violência de que foi vítima. Em ambas as direções, se trata de legitimar o uso da violência, seja passada ou futura.
A violência é um paradoxo, de qualquer lado que se veja a questão. A única possibilidade de minimizar seus efeitos é interromper o processo de violência. Porém, isso requer que os violentados se disponham a baixar as armas da vingança. Quem tem coragem de fazer essa solicitação? Quem poderia pedir aos violentados que perdoem?