RIP: por que a condição moral de Pelé chama tanto a atenção? 

Chama a atenção que historiadores tenham se enveredado por um tipo de apreciação moral particular sobre Pelé

O maior jogador de futebol de todos os tempos (já decorridos) faleceu há pouco tempo. Pelé possui uma importância enorme e desempenha um papel relevante na história do futebol e do Brasil que permite poucas comparações. Não tenho a habilidade para tecer os elogios que seriam adequados a um jogador e a uma figura pública como ele.

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A função de ídolo a que ele compulsoriamente foi conduzido claramente não lhe caía bem e lhe causava certo constrangimento. São várias as suas declarações referindo-se a Pelé na terceira pessoa, como se se tratasse de um personagem com quem ele era obrigado a conviver a contragosto. Certamente, Edson Arantes do Nascimento não tinha talento para ser ídolo. Pelo menos ele não se sentia à vontade nessa posição.

Por ocasião de sua morte, alguns comentaristas – todos nós o somos em alguma medida – manifestaram suas críticas a Pelé. Não eram críticas acerca de suas habilidades de jogador de futebol. Eram críticas morais. Algumas se referiam ao não reconhecimento espontâneo da paternidade de uma filha. Outras se referiam à convivência sem atritos com o período da última ditadura militar no Brasil. O curioso com respeito às críticas, não é se elas são justas ou injustas. Não se trata de saber se Pelé foi um mau pai e um alienado político ou não. Gostaria de me concentrar na direção a que essas críticas nos levam e o que elas realmente dizem.

Por que a condição moral de Pelé chama tanto a atenção?

O que me chamou atenção é que, mesmo técnicos em conhecimento científico histórico – historiadores – tenham se enveredado por um tipo de apreciação moral particular sobre Pelé. O que essas críticas visavam não dizia respeito à condição de ídolo ou mesmo ao desempenho de Pelé como jogador de futebol. Elas diziam respeito à condição moral de Pelé.

Quando avaliamos as demais pessoas considerando-se sua condição moral só podemos lançar mão de nossos próprios valores. Sabemos que a moralidade é cultural, que ela é relativa a padrões educacionais formais e informais, que ela varia de acordo com circunstâncias muito específicas. A despeito dessa constatação democrática acerca da moralidade, tomamos outra direção com relação a Pelé. De fato, ao reconhecer a variabilidade da moralidade, deveríamos ser cautelosos ao embasar nossas críticas nesse aspecto. Tudo indica que, com base no que sabemos hoje, que não é prudente tecer comentários com base no padrão de moralidade das pessoas. Afinal, alguns de nossos antepassados comiam gente, outros estupravam, uns escravizavam, outros matavam, muitos deles roubavam…

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Para ser digno de admiração supõe-se que não se possa ser objeto de crítica moral

O fato de não considerarmos essa variação nos padrões de moralidade ao criticar Pelé diz muito sobre a direção daquilo que julgamos importante: a moralidade individual de cada um. Para ser digno de admiração e reconhecimento se supõe, então, que uma pessoa não pode ser objeto de crítica moral. Porém, para efetuar uma avaliação desse tipo não posso levar em consideração os padrões morais do próprio Pelé, mas os meus – de quem crítica.

Ao realizar esse gesto, coloco meus próprios padrões morais acima de qualquer outra coisa. Desconsidero as circunstâncias, a história, a variação das personalidades, o efeito da sociedade e do ambiente imediato sobre cada ser humano, a educação etc. Ou seja, torno o objeto da minha avaliação uma pessoa como eu. Avalio-a como se ela fosse eu. E faço isso porque considero que eu tenho a chave para realizar essa avaliação. É a minha própria moralidade que foi elevada à condição de régua da vida de todas as demais pessoas, sejam elas contemporâneas ou não.

Ao proceder dessa maneira, nos colocamos na posição de juízes absolutos, aqueles que estariam dotados das condições de ver as coisas de um ponto de vista completamente objetivo e que – curiosamente – coincide com a minha própria moralidade. Esse padrão de crítica expressa o que sou e em que acredito. Porém, aqui essa opinião é alçada a uma posição especial: ela se torna o critério absoluto.         

Não creio que Pelé necessite de defensores e não me ocupei com isso aqui. A direção de nossas críticas indicam claramente a falta de constrangimento em colocar a própria opinião em primeiro lugar. Ou seja, trata-se de converter a intolerância em regra de convivência.

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Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie