O que está por trás da militância antidemocrática?

Marcha antidemocrática: Vista de fora, a parada antidemocrática carece de profundidade. Ela manifesta a necessidade por ordem, mas de uma maneira inadequada; entenda

 A eleição presidencial de 2022 terminou e Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito para governar o Brasil até 2026. Alguns eleitores insatisfeitos com o resultado das eleições têm realizado manifestações de inconformidade. Manifestações que são antidemocráticas porque a democracia se define pelo império da lei. Faz parte desse regime que ninguém se coloque em condições de privilégio diante dela. Discordar da decisão da maioria é agredir o regime democrático.

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Ainda assim, mais de uma semana após o final das eleições, alguns se manifestam contra os resultados. O que julgo mais curioso não é propriamente o aspecto antidemocrático dessas manifestações, mas como elas acontecem. Até porque, quem se manifesta contra os resultados eleitorais já solicita um novo arranjo político – que não pode ser o democrático. Então, para todos os efeitos, não se trata de um interesse pela reforma da democracia, mas pela sua extinção pura e simples. Mas passemos ao como.

Em vários vídeos disponíveis na Internet é possível ver brasileiros de várias idades, gêneros e etnias expressando sua inconformidade com o regime democrático. É comum ver-se aí pessoas enroladas em bandeiras simulando um desfile militar ou, ao menos, uma postura militarizada. Isso expressa um certo nacionalismo, mas também uma demanda por ordem.

Para mim, o impressionante nos vídeos é como as pessoas expressam seu desejo por outro regime político – antidemocrático. A parada militar em geral é solitária e expressa uma tentativa de imposição de ordem. Como a marcha é de um único indivíduo, ele deveria incorporar a ordem. Mas as imagens não expressam essa incorporação. A pessoa se envolve na bandeira nacional, tenta uma marcha militar, eleva os joelhos, estica os braços para a frente e parte na caminhada. Depois dá uma meia volta marcada pela rigidez e retorna ao ponto de origem. Porém, em nenhuma das imagens que assisti há uma verdadeira parada militar.

A ordem não se encontra expressa por aquele corpo que tenta marchar. Os movimentos mimetizam certa disposição rígida do corpo, mas isso não passa da epiderme. A ordem não está efetivamente naquela pessoa, não possui profundidade, não está dentro dela. Claramente se trata de arranjo em que o comportamento não coincide com o corpo, ele é somente uma fantasia, uma camada externa mal ajustada ao interior. Não se trata apenas de falta de treino, mas de aptidão para adotar a ordem.

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Quando a tentativa de marcha é coletiva, quando se desfila em conjunto, o efeito é ainda pior porque aí mesmo é que não há ordem. Cada pessoa age de uma maneira, possui uma vestimenta diferente, se movimenta de uma maneira própria. O conjunto simplesmente não existe. Ou seja, a ordem que cada um tenta se impor é diferente da ordem geral que domina nos autênticos ambientes militares. O efeito pode até parecer cômico – mas não quero destacá-lo aqui.

Parada antidemocrática: marcha militar fora da ordem transforma-se em alegoria carnavalesca

Vista de fora, a parada antidemocrática carece de profundidade. Ela manifesta a necessidade por ordem, mas de uma maneira inadequada. Aparentemente, o que as pessoas desejam não pode aterrissar nos corpos que possuem. Eles não expressam nenhuma vocação coletiva para a ordem e nem mesmo uma vocação individual profunda. Por isso a marcha antidemocrática possui ares de burla. A sensação transmitida pelas paradas é carnavalesca.

Não tenho nenhuma intenção de promover uma leitura jocosa dessas manifestações. Apenas tendo entender o que elas expressam para além das intenções sinceras de seus participantes. Nelas, a ordem é uma fantasia que mal recobre as superfícies dos corpos. Nesses não se nota a disposição para, eles mesmos, se mostrarem ordenados. A ordem se apresenta nas paradas antidemocráticas como um adereço claramente mal ajustado. Por isso, elas têm esse aspecto carnavalesco, fantasioso, teatral. A ordem é da esfera do figurino.

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Roupagem antidemocrática

A questão que julgo importante é verificarmos se eventuais paradas democráticas não produzem o mesmo tipo de efeito teatral. Se não for assim, então somente a roupagem antidemocrática estaria ligada ao Carnaval. Mas, se for diferente, então é o Brasil todo que só consegue experimentar a ordem como um evento carnavalesco. Afinal, é a solicitação antidemocrática de ordem que é carnavalesca ou é a necessidade de qualquer ordem?

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie