Quando o ser humano cultiva um gramado ele planta um demônio no mundo. Quando ele embeleza sua residência por meio de um gramado…
Imagino que o leitor, por mais urbanizado que seja ou tenha se tornado ao longo da vida, conhece de perto um gramado. Me refiro, sim, àquela porção de grama que se cultiva em torno das casas. Uma de suas características é a uniformidade das plantas cultivadas e que lhe fornece um aspecto estético interessante: quanto mais parelho e sem falhas, mais bonito o julgamos.
O fato de ser perene durante largos períodos de tempo também lhe fornece uma característica interessante. Isso, talvez porque julguemos que seu dono seja laborioso, cuidadoso ou tenha realmente algum afeto pela sua obra. Afinal, um gramado é fruto de uma intervenção humana na natureza, às vezes ele é mesmo um fruto de uma intervenção continuada que se exerce sem tréguas através do plantio, adubação, irrigação, capina e extirpação de invasores de todo tipo.
Naturalidade é a palavra-chave
Talvez o que seja menos conhecido, mesmo para os menos urbanizados, é a condição natural do terreno sem a presença do gramado e, portanto, sem o trabalho humano de intervenção na natureza. Ao contrário do que em geral se acredita, essa condição natural não é estática. Pelo contrário, nela se nota ao longo das estações uma alteração do padrão vegetal: quando está mais frio, há o predomínio de um tipo de vegetal. Depois, quando se torna mais quente, outro tipo de vegetal se torna dominante. Quando está excessivamente úmido, essas condições beneficiam a emergência de plantas que em condições mais secas não se tornariam notadas.
Não só existe uma oscilação de predominância vegetal ao longo das estações (mesmo aqui em um país tropical e equatorial) como existe uma espécie de tensão e luta permanente em que um tipo de vegetal termina obtendo, por algum curto período de tempo, algum tipo de domínio sobre os demais. Só há a aparência enganosa de equilíbrio se analisarmos essa situação de tensão e disputa permanente por um período de tempo muito grande. Mas, na verdade, mesmo aí se pode notar que vai ocorrendo uma alteração constante do padrão vegetal. Isso porque, com o crescimento gradual das plantas e a consequente ocupação do espaço físico, novas espécies vão se impondo. De tal forma, que não existem condições de ocupação do solo estáticas. Com os sucessivos tipos de domínio vegetal, novas condições vão se estabelecendo e, com elas, outros tipos vão adquirindo vantagens e se estabelecendo com mais facilidade.
Quando vemos uma mata, por exemplo, o que estamos visualizando é o resultado de uma longa sequência de fases em que vários tipos de vegetais se tornaram dominantes para depois morrerem e serem substituídos por outros mais ajustados às novas condições. O resultado nunca é uma condição única estabilizada, mas um fluxo permanente de alterações que criam novas condições propícias para vários tipos de seres diferentes.
Seguir o fluxo das condições existentes no momento, é uma questão de sobrevivência
Enfim, a vida prolifera por meio da morte, se diversifica na mesma proporção em que vai eliminando aqueles que não estão ajustados às condições existentes – sempre alteradas pela presença dos próprios vegetais. Isso para não introduzirmos aqui a variabilidade dos tipos de insetos e outros seres cujas gerações também são afetadas e afetam esse complexo mutável de vida e morte.
O que significa plantar um demônio no mundo?
Quando o ser humano cultiva um gramado ele planta um demônio no mundo. Quando ele embeleza sua residência por meio de um gramado, ela cria obstáculos que impedem a vida e a morte de se manifestarem livremente. Sua intervenção interrompe o movimento de ampliação da vida, congela o mundo em um abraço apertado de morte. E a morte, nesse caso, não é um fim, mas apenas a continuidade dos mesmos seres, a eternidade absurda de uma mesma figura: um mesmo tipo vegetal, uniformemente disposto, absolutamente controlado pela disposição maníaca do ser humano, uma única condição imposta ao mundo.
Como se pode perceber beleza nessa uniformidade estática e mortal? Como pode haver sentido nessa dedicação incessante que sempre aponta em uma mesma direção, contra toda a diversidade e proliferação da vida que se espalha por toda parte sem nenhuma lógica aparente?
O sentido da razão, a morte e o demônio
O sentido valorizado por nós, humanos, chama-se razão. E essa racionalidade nada mais é do que um tipo de morte da morte. Não aquela morte que mata e, com isso, fornece novas oportunidades para a vida, a morte como uma etapa na sucessão contínua de seres. A razão é a morte que mata a possibilidade de outra vida. A razão é o demônio da eternidade que inventamos para escapar da variabilidade e do tempo. Ela é o mal que inventamos para escapar. Por favor, não plantem um gramado! Deixem o mato tomar conta de tudo!