O que significa ter autocontrole?

Autocontrole não é um órgão do corpo. Muito menos um dom, no sentido mágico da palavra. Trata-se de um padrão de comportamento e você tem mecanismos para poder manejá-lo; saiba

Frequentemente ouço alguém dizer que Fulano não se segura, não tem autocontrole. Do jeito que o termo é usado, pode dar a entender que autocontrole é um tipo de dom misterioso, e que você teria tido a sorte de ser dotado desse dom ou, na ausência de tal atributo, estará fadado a desatinos.

Autocontrole não é um órgão do corpo. Muito menos um dom, no sentido mágico da palavra. Vamos entender que ele é um padrão de comportamento. Quanto mais você conhecer seu modo de funcionar, mais provável será você se comportar na direção do sucesso.

O exemplo de Marcos e Lélia

Vamos pensar juntos. Exemplos talvez ilustrem o ponto que desejo compartilhar. Marcos e Lélia começaram a discutir. No ar, entre eles, já pairam a mágoa, defensividade, ironia, raiva. Postura corporal tensa, tom de voz mais elevado. E Lélia diz ao marido que ele vai ser um fracassado tal como o pai dele!

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Por um triz Marcos não lhe devolve com um insulto sobre a mãe dela, uma senhora com problemas de abuso de álcool. Ele conseguiu se dar conta do contexto: percebeu que estavam à beira de um barranco extremamente perigoso; poderiam rolar escarpa abaixo e sabe-se lá se o relacionamento poderia ser reconstruído depois.

Marcos expira devagar, ameniza a postura física hostil e em tom triste, mais grave, diz para a esposa que eles estão tensos demais, magoando uns aos outros e longe de resolverem o conflito que gerou a briga. Disse a ela que precisam muito conversar e para isso a fervura teria que abaixar.

Marcos achou que dar uma caminhada e tomar um ar fresco poderia ajudar, e a convidou a darem uma volta juntos. Ela não quis, Marcos disse que entendia e prometeu voltar assim que estivesse mais centrado. Pediu a ela que tentasse também se desarmar um pouco, relaxar e prometeu retomarem o assunto antes do jantar. E assim o fez. Ambos menos agressivos, puderam pôr os pingos nos is.

À medida em que a briga evoluía, Marcos notou sua ativação física, o corpo inundado de hormônios de estresse, musculatura tensa. Observou também suas emoções, elas estavam no espectro da hostilidade crescente e, óbvio, sua tendência seria de apresentar mais comportamentos agressivos. Nesta hora foi possível interromper o processo. Não respondeu à ofensa sobre o pai, explicou o que iria fazer, ofereceu apoio e prometeu se falarem depois, se estiverem menos agressivos. E foi assim mesmo, mais tarde sentaram civilizadamente para uma conversa difícil e respeitosa.

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O exemplo de Raquel

Raquel lutou por anos para perder peso. Fez todas as dietas, as sensatas e as malucas, desistia da academia depois de dois ou três meses a cada verão, seu peso era um ioiô, desce e sobe… Depois de anos assim, foi observando melhor seus hábitos alimentares. Precisava entender seu funcionamento. Comia para se confortar, fosse do tédio, solidão, cansaço, medo. E a alegria, para valer, só se fosse acompanhada de muitos comes e bebes. Era um comer com função de aplacar emoções desconfortáveis e ampliar os prazeres.

O acaso lhe beneficiou imensamente. Uma amiga de longa data, vizinha de prédio, lhe convidou a entrar num grupo de meditação de atenção plena, a tal mindfulness, e a vizinha lhe ofereceu carona de ida e volta para os encontros.

Raquel aceitou a proposta, ter companhia na empreitada era mais razoável, experimentou um estranhamento inicial, com a quebra de expectativas sobre como se medita e com qual função, e tudo se desenrolava num ambiente acolhedor e sereno.

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O tempo passou e meditar, para Raquel, se tornou um hábito tão essencial quanto escovar os dentes. Gradualmente ela aprendeu a acolher suas emoções e pensamentos, sem julgamento ou expectativas a priori. Ela tornou-se um terreno no qual muitas ideias e sentimentos floresciam, e ao longo do tempo, ela não mais precisava aplacar o desagradável ou se agarrar ao prazer transitório.

Sentindo vontade emocional de comer, fazia pequenos exercícios de mindfulness, e observava se a compulsão se modificava. Raquel foi emagrecendo de pouco em pouco ao longo de seis anos, se reconciliou com emoções e alimentos.

Autocontrole: atente-se ao aqui-agora

Ambos os casos sinalizam pessoas em sofrimento. E neles os protagonistas atentaram para o aqui e agora. O que está acontecendo comigo? O que me influencia? Se eu fizer mais do mesmo não alcançarei algo novo, e o que obtenho me faz mal… E aí? Com a auto-observação, estabeleceram hipóteses.

Marcos descobriu que se a briga continuasse chegariam ao inferno. Ele precisou mudar seu próprio comportamento, brigar era o mais provável depois que a reputação de seu pai entrou no jogo. Então, percebeu que só conseguiria se acalmar se afastando um pouco, reassegurando a mulher de que não estava fugindo da raia. Regulou sua tensão expirando, foi caminhar, relaxou um pouco mais.

Ou seja, ele adotou comportamentos novos, que mudaram a chance de darem prosseguimento à briga. Expirar, reassegurar a esposa, dar uma volta, tudo junto dificultou o comportamento de brigar mais e favoreceu se acalmar e ter depois uma conversa mais produtiva.

Raquel aprendeu a manejar o desconforto

No caso da Raquel, sentir-se desconfortável, um tipo de sofrimento, era atenuado a curto prazo ao comer em excesso. A médio ou longo prazo sentia-se insatisfeita, ganhava peso, sofria mais ainda. Ela descobriu, meio que por acaso, outras vias de manejo do desconforto. Sentindo a fome emocional escolheu a prática de mindfulness, que talvez lhe trouxesse, e trouxe, um novo jeito de manejar as emoções.

O autocontrole aqui consistiu em emitir uma ação que alterou a probabilidade de ocorrência de outro comportamento, bem mais nocivo. Isso dependeu de se dirigir um olhar atento sobre as condições reinantes ao redor de cada protagonista.

Essa análise, preciosa, favoreceu transformar vidas. Comportamento de autocontrole é isso: intervir sobre a própria gama de possibilidades que uma situação evoca por meio da variabilidade das ações, orientadas por um valor maior, fosse este o relacionamento conjugal de qualidade ou o manejo não escapista de emoções desconfortáveis.

É psicoterapeuta na abordagem analítico-comportamental na cidade de São Paulo. Graduada em Psicologia pela PUC-SP em 1981, é Mestre e Doutora em Psicologia Experimental pela IP-USP. Atua como terapeuta e supervisora clínica, é também professora-convidada em cursos de Especialização e Aprimoramento. Publicou dezenas de artigos científicos, e de divulgação científica, além de ser coautora de livros infanto-juvenis.