Pessimismo: você consegue dosá-lo?

Entenda a tênue fronteira que separa o pessimismo da esperança, pois socialmente vive-se um processo de ‘suicídio coletivo’

Uma das características marcantes da terceira idade certamente é o pessimismo. Talvez isso ocorra por haver adquirido a consciência de que mudanças de comportamento por parte dos seres humanos são extremamente difíceis. Elas não apenas são árduas, como tendem a não gerar os resultados que se espera. A experiência nos diz que muito pouca coisa efetivamente está sob nosso controle e que não passamos de seres que pegam carona em processos que nos ultrapassam na grande maioria das vezes.

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Sabendo disso, é necessário dosar o pessimismo para não nos tornarmos insuportáveis aos demais. Afinal, a partir dessa perspectiva fornecida por certa experiência, é normal tornar-se cético e agir no sentido de destruir as esperanças de nossos colegas passageiros. Isto é, para continuar vivendo em sociedade devemos nos obrigar a ser otimistas, de tal forma que não deixemos que o resultado de nossas experiências nos conduzam ao ceticismo mais amargo e cristalino.

Sutil dosagem de pessimismo

Mesmo tentando fazer essa sutil dosagem do pessimismo oriundo da experiência de vida com um respeito otimista pela capacidade do ser humano de dar um novo rumo à sua vida, as vezes o equilíbrio se torna impossível.

Por exemplo, hoje li uma reportagem sobre os melhores lugares para aposentados viverem no Brasil. Não vou aqui repetir a avaliação das cidades que se mostraram melhor qualificadas para receber idosos no nosso país de acordo com a reportagem. Me espanta o que os critérios utilizados para a eleição dos melhores lugares revelam.

Uma das cidades eleitas possui o maior número de leitos disponíveis por milhar de habitantes pelo Sistema Único de Saúde. Uma outra cidade possui o maior número proporcional de enfermeiros em atividade no país. E uma terceira cidade – se prepare – possui o menor número de pessoas de baixa renda do território brasileiro! E isso não é uma piada de mau gosto. A reportagem possuía todos os indícios de fornecer um tratamento sério para o problema da qualidade de vida dos aposentados.

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Supostamente a expectativa é de que aposentados são pessoas doentes e, além disso, que possuem uma alergia muito específica ligada à convivência com a pobreza. Não há qualquer traço de humanidade nos critérios utilizados para escolher bons lugares para se viver depois de finalizada a vida laboral. Só há doença e aversão à pobreza.

Viver parece ser uma maldição?

Acreditar que a qualidade de vida de um ser humano se restringe a ter acesso a serviços de saúde já me parece um disparate abaixo da possibilidade de crítica. Claro que o Brasil é um país em que esses serviços funcionam mal. Mas daí a tornar isso um critério para escolher lugares para se viver bem implica em uma brutal restrição do sentido da vida humana. A palavra felicidade sequer foi mencionada no texto que trata de qualidade de vida. A palavra sentido também não. Desse ponto de vista, viver parece envolver alguma maldição em que se trabalha para poder pagar um bom serviço de saúde, numa espécie de armadilha de mau gosto em que caímos quando nascemos. A vida já é um inferno.

Além de restringir a vida saudável a serviços de saúde, a reportagem ainda agrega um elemento moral. Quer dizer, ela agrega ao horror um elemento imoral: para viver bem, você deve se isolar da pobreza. Não se trata de nada mais do que da hipocrisia de assumir que se vive em país desigual e que o melhor a se fazer é tentar se isolar dessa situação. Afinal, boas condições de vida implicam em escolher cidades com pouca pobreza para viver. Tudo leva para um asilo: serviços de saúde e a pobreza impedida de entrar. Um mundo asséptico e controlado.

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Se não se trata somente de um erro de perspectiva, de uma infelicidade gritante com relação à total falta de empatia com seres humanos pobres e velhos, então se trata de fornecer à falta de sentido existencial uma defesa. Afinal, a reportagem trata como perfeitamente normal que velhos sejam pessoas destinadas à doença e que a pobreza deve ser objeto de isolamento – que o nosso destino é nos tornarmos doentes e construir muros para não ver a miséria dos outros.

No conjunto, acredito que os critérios falem muito de como muitas pessoas pensam. Nesse caso, aquela minha dose forçada de otimismo perde totalmente a força artificial que eu lhe fornecia. Se é isso o que realmente se pensa, se é isso em que se acredita, talvez esteja chegando o momento em que vamos manifestar, sem nenhum disfarce, nossa capacidade destrutiva como espécie. Não me refiro à capacidade de destruir outras espécies, me refiro à capacidade de cometer suicídio coletivo. E não sei se alguém teria motivos para se lamentar…

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie