Por que temos dificuldade em acolher o outro?

A dificuldade para acolher o outro é um reflexo da forma como enredamos nossa vida no mundo atual; entenda

O que São Francisco de Assis quis passar às pessoas quando dizia que “o amor ultrapassava as barreiras da geografia e do espaço” e que é feliz “quem ama o outro, o seu irmão, tanto quando está longe ou quando está junto de si”?

Ele estava se referindo à fraternidade aberta, aquela em que não há distinções de nenhuma natureza e onde nada representa uma fronteira, principalmente, para o acolhimento.

Infelizmente, mesmo tendo passado por guerras, destruições e tragédias, o mundo parece ter seguido na direção contrária de uma sociedade mais acolhedora e humanitária, dando origem a outros tantos fracassos pautados no raso argumento em defesa de interesses comuns de uma nação.

Se engana quem associa a globalização à irmandade. Estarmos conectados não nos torna irmãos. Em muitos casos, aliás, nos distancia ainda mais dos valores que, de fato, nos unem verdadeiramente.

Consumimos de maneira desenfreada tudo o aquilo que nos é oferecido, muitas vezes sem qualquer critério. Movimento que dá força à construção de uma sociedade polarizada, em busca de interesses individuais, sempre desconfiada e muito, mas muito, competitiva. Então, cabe a pergunta: Como enxergar o próximo, com o olhar desprovido de tudo o que não seja, realmente, fruto de um amor genuíno?

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Somada a essa condição humana que vivemos atualmente, está a síndrome da pressa que, da mesma forma, nos cega diante da necessidade do outro, de ser acolhido.

Estamos num casulo

Construir juntos, focar em objetivos em prol do coletivo, estender o olhar àquilo que falta não só para si, mas para toda a humanidade, mais parece um sonho sem qualquer cabimento. E justamente por não vermos coerência nesta ideia, reflexo da escassez de valores, seguimos para o fechamento em nós mesmos, o que é bem diferente da “interioridade”.

O primeiro é uma espécie de casulo no qual entramos e não conseguimos enxergar nada além daquilo que nos cerca; já o segundo, sugere uma amplitude de conhecimento, de renovação e abre um caminho vasto para agirmos em prol do nosso autocuidado e do cuidado com o outro.

Acompanhamos a evolução tecnológica tão de perto, temos acesso a tantos recursos e sistemas, mas não saberíamos identificar, com a mesma velocidade, o que precisamos fazer para estar mais próximos e sermos mais acolhedores.

Às vezes, é como se algo muito perigoso ou ameaçador (como a pandemia da Covid 19) tivesse que nos lembrar o quanto as pessoas são dependentes umas das outras para que, juntas, consigam se salvar.

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Fomos desmascarados. Nossas vulnerabilidades vieram à tona, derrubando a postura prepotente e individualista.

Ainda assim, continuamos a buscar resultados rápidos e que nos passem a ilusória sensação de segurança, sendo que, ao contrário, desenvolvemos mais ansiedade e impaciência. Sintomas causados pela falta de uma vida compartilhada.

Oras, se o sentimento de pertencimento não existe, o que nos resta além da angústia e do vazio?

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O efeito reverso da comunicação

As mídias sociais nos conectaram de tal forma que a proximidade, ao invés de acolhimento, trouxe falta de intimidade.

Estamos expostos a todo tempo, sob os mais diversos olhares que nos moldam como objetos a serem descritos e, se não agradar, somos descartados. Aos poucos, o respeito pelo outro vai se esvaindo e a tendência ao isolamento se torna ainda mais previsível.

Com isso, cresce na mesma intensidade o distanciamento social e a dependência do mundo digital. A realidade de fato, concreta, deixa de fazer parte da vida da pessoa e, por consequência, seus relacionamentos sofrem os efeitos negativos deste comportamento.

O acolhimento da reciprocidade presencial

Só conseguimos falar em uma relação de amizade consistente quando consideramos tudo o que envolve a comunicação entre duas pessoas: o toque, a linguagem corporal, o perfume, os gestos e muitos outros indícios e manifestações que caracterizam, realmente, o contato… não a conexão.

Assim, o encontro com a realidade se torna o caminho para uma vida mais harmoniosa, com mais sentido e propósito. Precisamos nos dar o direito da convivência antes de separar, de forma imediatista, o que gostamos ou não; ou simplesmente eliminar das nossas vidas virtuais quem nos causou sofrimento, como se isso fosse a resolução dos problemas e curasse a ferida exposta.

Ouso dizer que há uma surdez generalizada quando devemos escutar o outro, face a face. O egocentrismo ainda surge como um divisor de águas entre estender a mão ou levá-la a tampar os olhos e os ouvidos.

O que São Francisco de Assis quis nos transmitir talvez seja sua predisposição a escutar a todo qualquer som que chegue como um alerta, como um convite à prática do acolhimento, de si e do outro. Um caminho também difícil, porém, o mais sábio e verdadeiro.

Maria do Céu Formiga é psicóloga, escritora Membro da Academia de Letras da Grande São Paulo, (ocupando a cadeira de Mario Quintana) e aquarelista. É pós-graduada em Psicologia Social, Mestre em Ciências da Religião. É consultora autônoma, coordena cursos e workshops. Realiza palestras e trabalhos em simpósios e congressos nos seguintes países: França, Inglaterra, Cuba, Israel, Chile e Estados Unidos. Mais informações: www.mariadoceuformiga.com.br