Os verdadeiros sem-terra têm uma vida definitivamente marcada por esta condição; saiba quem são eles
A maioria de nós acredita que os sem-terra são um grupo de pessoas destituídas de posses e, mais exatamente, destituídas da posse da terra. Em geral, pensamos que esse grupo de pessoas se organiza para lutar pela reforma agrária e, depois, poder se tornar produtor rural. Creio que tudo isso faz parte de uma compreensão habitual que temos sobre os sem-terra. Porém, nos últimos tempos deparei-me com um conjunto de pessoas verdadeiramente sem-terra.
Os sem-terra, de acordo com nossa compreensão habitual, descreve uma situação passageira. Quer dizer, essas pessoas estão sem terra e lutam por reverter tal situação convertendo-se em seres com-terra. Sua situação, embora dramática é temporária. Mesmo que a luta pela posse da terra demore para ser finalizada através de uma reforma agrária, as pessoas que estão sem terra se tornarão pessoas com terra. Mesmo se considerarmos o aspecto crônico da péssima distribuição de terras no Brasil, em que o latifúndio se beneficia da mecanização do campo, não podemos dizer que a condição dos sem-terra não seja passageira.
Um dia, mesmo que hipotético, tais pessoas poderão deixar de ser sem-terra e tornarem-se produtores rurais. Senão essa geração, talvez uma próxima ou ainda uma terceira. Não há nada na existência dessas pessoas que as torne definitivamente sem-terra. Sua vida não é definida por sua condição de sem-terra.
Quem são os verdadeiros sem-terra?
Mas há um grupo de pessoas cuja vida está definitivamente marcada pela condição de sem-terra. E é apenas a esse último que gostaria de atribuir o termo sem-terra a partir de agora. Para esses não há como reverter sua situação. Inclusive a possibilidade de que eles venham a possuir terras só agravaria sua condição de sem-terra. Esses verdadeiros sem-terra são os brasileiros extremamente ricos. Esses que, nesse momento em que vivemos, tornam-se ainda mais ricos e, por consequência cada vez mais afastados da terra.
Como vivem os verdadeiros sem-terra?
Os sem-terra brasileiros vivem em um ambiente em que todos os demais necessitam buscar benefícios sociais junto a eles, como se fossem o centro de uma roda. Como eles detém a maior parte da riqueza da nação, eles não se ocupam diretamente com nada, porque há sempre alguém que pode fazer qualquer coisa por eles. Entre os sem-terra e qualquer situação existencial há sempre pelo menos um intermediário. Na verdade, há sempre uma cascata de intermediários já que a condição de sem-terra parece ser viciante: quanto mais a situação de distanciamento com relação ao mundo se acentua, mais e mais intermediários se fazem necessários. E, com eles, aumenta a distância entre os sem-terra e a vida.
Vamos a um exemplo. Qualquer um de nós, que não é sem-terra, vai ao supermercado para as compras. Um sem-terra não vai. Ele envia um assessor de compras ao supermercado. Mas esse assessor não realiza pagamentos, até porque esse acúmulo de funções poderia dar margem a algum desvio ético. Não, nenhum assessor é confiável! Então o sem-terra lança mão de um assessor financeiro: alguém que realize os pagamentos das compras realizadas pelo primeiro.
Depois disso, é necessário que as compras cheguem à casa do sem-terra. Então, será necessário um motorista – que conduziu o assessor de compras ao supermercado. Esse é o terceiro assessor. Mais tarde, já em casa, um assessor acondiciona as compras para que eles possam ser preparados para um outro assessor, especialista na preparação de alimentos etc.
Por que não há qualquer contato entre o sem-terra e a própria comida
O leitor deve ter percebido que – nessa situação e em tantas outras semelhantes, propiciadas pelo estilo de vida dos sem-terra no Brasil – não há qualquer contato entre um sem-terra e sua própria comida senão durante o ato de se alimentar. A verdade é que a comida simplesmente surge diante dele, como em um passe de mágica. Ele não a compra, não a paga, não a carrega, não a acondiciona, não a prepara. Ele apenas a come. Entre o sem-terra e a comida não se estabelece qualquer relação senão a do consumo final. Ele nada sabe sobre ela, de onde ela vem, como chegou a ele. Com o passar dos anos esse isolamento existencial corrói até mesmo o saber dos alimentos. Isso ocorre porque o isolamento é a regra dominante desse ambiente e ela contagia o resultado – como é de se esperar em qualquer processo.
Os muito ricos, os sem-terra verdadeiros, não podem lutar contra sua riqueza e mesmo quanto tentam escapar dela, só o podem fazer por dentro dela, envolvendo-se mais e mais com ela. Suas preocupações genuínas com a cascata de assessores (quando essa atitude existe) não passam de formalidades porque ocorrem no interior da condição de isolamento existencial dos sem-terra. Um sem-terra é um ser solitário porque todo contato é um mal por si mesmo, um tipo de queda. Um sem-terra não pode evadir-se de si. Ele está condenado a existir no vácuo. Os muito ricos do Brasil não vivem aqui – e nem ali.