Vamos repensar expressões que usamos?

Pronunciamos cerca de 20 mil palavras por dia e não paramos para pensar sobre o seu real significado

Neste ano de 2020, estamos sendo postos a muitas provas. Assim, dentre tantas questões, uma que me chamou a atenção: foi uma cartilha editada pelo Programa Sesc e Senac de Diversidades, que propõe a seguinte reflexão: “vamos repensar nosso vocabulário?”

Continua após publicidade

Segundo a cartilha, estudos dizem que chegamos a pronunciar 20 mil palavras por dia. Mas o curioso é que não paramos para pensar no significado das palavras do nosso vocabulário e em quantas vezes reproduzimos, mesmo sem querer, expressões e termos que reforçam estereótipos negativos.

Assim, a proposta é apresentar algumas palavras e expressões que estão no nosso vocabulário cotidiano e que nos fazem reproduzir discursos preconceituosos.

Quanta vezes você ou alguém próximo de você já utilizou expressões como:

A COISA TÁ PRETA. O termo associa a palavra “preto” com uma situação desconfortável, desagradável, difícil ou perigosa. Diga: A COISA TÁ DIFÍCIL.

Continua após publicidade

A DAR COM PAU. Esta expressão tem origem nos navios que traziam os povos escravizados, quando algumas pessoas preferiam morrer de fome a serem escravizadas. Assim, elas eram alimentadas à força com um tipo de colher de pau grande, daí vem a expressão “a dar com pau”. Diga: BASTANTE, MUITO.

ATÉ TENHO AMIGOS QUE SÃO NEGROS. Frase de defesa quando se aponta alguma atitude ou fala racista. Não utilizar. Repense seu comportamento. Vivemos em uma sociedade racista. Infelizmente, ainda é comum reproduzirmos falas racistas sem nos darmos conta. NÃO USE ESTA EXPRESSÃO!

CABELO RUIM, CABELO DE BOMBRIL, CABELO DURO. Termos racistas usadas como bullying que depreciam a imagem e o cabelo de pessoas negras. Falar mal das características dos cabelos Afro também é racismo. Diga: CABELO CRESPO, CACHEADO, AFRO.

Continua após publicidade

COR DO PECADO. Utilizada erroneamente como elogio, se associa ao imaginário da mulher negra sensualizada. Em uma sociedade pautada na religião, pecar não é positivo, ser pecador é errado, e ter a pele associada ao pecado significa que ela é ruim. Logo, mais uma expressão que faz a mesma associação de que negro é igual a negativo. NÃO USE ESTA EXPRESSÃO!

CRIADO MUDO. Você sabia que o nome dado a este móvel faz referência aos criados (geralmente escravizados) que deviam segurar objetos para seus senhores? Como estes criados não podiam falar, eram considerados mudos, daí o termo criado-mudo. Diga: MESA DE CABECEIRA.

COISA/SERVIÇO/TRABALHO DE PRETO. Usado para descrever um serviço mal feito. O termo é carregado de preconceito, uma vez que descreve as pessoas negras como incapazes e preguiçosas. Jamais use estas expressões! Substitua por: TRABALHO ERRADO.

DENEGRIR. Tem como real significado “tornar negro”, “escurecer”. É usado para difamar ou acusar injustiça por outra pessoa, sempre usado de forma pejorativa. Ou seja, utilizar esta palavra pejorativa é extremamente racista. Diga: DIFAMAR.

DOMÉSTICA. Domésticas eram as mulheres negras que trabalhavam dentro da casa das famílias brancas e eram consideradas domesticadas. Diga: EMPREGADA, FUNCIONÁRIA.

FAZER NAS COXAS. Acredita-se que a expressão vem da técnica utilizada pelos escravizados para fazer telhas. Por serem artesanais e seguirem os formatos dos corpos, as peças não se encaixaram bem umas nas outras, sendo consideradas mal feitas. diga: MAL FEITO.

HUMOR NEGRO. Usam para descrever um tipo de humor ácido e com piadas de mal gosto com temas mórbidos, sérios ou tabus com tom politicamente incorreto. Diga: HUMOR ÁCIDO.

INVEJA BRANCA. Associa o “negro” ao negativo, a algo que faz mal e o “branco” ao que é positivo, uma inveja boa, um sentimento do bem. Use apenas: INVEJA.

LISTA NEGRA. Usada para descrever pessoas que, por alguma razão negativa, estão excluídas de certos grupos, ou ainda que uma pessoa está sendo perseguida. Mais uma vez a palavra “negra” é usada como algo negativo. Diga: LISTA PROIBIDA OU LISTA RESTRITA.

MERCADO NEGRO. Muito usado para se referir a um sistema de compras e vendas clandestino, ilegal. Substitua por: MERCADO CLANDESTINO.

MORENO(A). Pessoas acreditam que chamar alguém de negro ou preto é ofensivo. Falar “morena” ou “mulata” , embranquecendo a pessoa, “amenizaria” o “incômodo”. CHAME A PESSOA PELO SEU NOME OU PERGUNTE COMO ELA PREFERE SER DESCRITA.

 MULATO(A). A palavra significa literalmente: mula, a cruza de um asno macho com uma égua. O termo surge na época da escravização, quando muitas mulheres escravizadas eram violentadas por “seus senhores” e tinham filhos que eram chamados de mulatos. Substitua por: PARDO(A) ou MESTIÇO(A)

NÃO SOU TUAS NEGAS. Trata a mulher negra como ”qualquer uma” ou “de todo mundo”. Esta expressão relembra o tratamento às mulheres escravizadas que eram, seguidamente, assediadas e estupradas. A frase deixa explícita que com “as negras pode-se tudo”, e com as demais não se pode fazer o mesmo. Nisso, está incluso desfazer, mal tratar. Portanto, além de profundamente racista, o termo é carregado de machismo. NÃO USE ESTA EXPRESSÃO!

NHACA. Desde a época colonial o termo é usado para falar de algo com cheiro forte, desagradável. O que pouca gente sabe é que Inhaca é uma ilha de Moçambique e é daí que vem o uso do termo, mais uma vez para reforçar estereótipos e preconceitos. Diga: CHEIRO RUIM.

TEM O PÉ NA COZINHA. Usada de forma preconceituosa para falar de pessoas de origem negra. Uma vez que, na época da escravização, a cozinha era o espaço destinado às mulheres negras. NÃO USE ESTE TERMO!

SAMBA DO CRIOULO DOIDO. É o título de uma canção de samba, composta por Sérgio Porto (pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta), que ironizava a obrigatoriedade de as escolas de samba retratar em seus enredos apenas temas de fatos histórico. Porém, a expressão debochada reforça um estereótipo e discriminação aos negros. Diga: confusão, trapalhada, bagunça. Não espere 2021 para que as mudanças aconteçam. Assim, deixo o convite para esta reflexão. Então, vamos repensar o nosso vocabulário?

Coordenador do serviço de atendimento a pacientes com tricotilomania no PRO-AMITI/IPq FMUSP. Supervisor clínico na UNIP. Psicólogo pela Universidade Metodista. Mestre em ciências pela Faculdade de Medicina da USP. Especialização em Terapia Cognitivo-comportamental pelo Ambulim/IPq FMUSP. Especialização em Psicologia Hospitalar pela UNISA