por Roberto Goldkorn
A minha amiga Maria Williams, vulgo Guta lá dos States me dá uma dica de pauta: os ratinhos do seu laboratório e a maneira como são armazenadas as suas lembranças/memória. Ela me diz que só conseguimos lembrar de uma só vez de sete itens que não estejam correlacionados, e que tudo é armazenado, mas não lembramos porque esquecemos em qual "gaveta" do nosso cérebro guardamos a informação.
No momento em que a doença de Alzheimer se torna quase epidêmica e outras enfermidades demenciais afetam o funcionamento do nosso painel de controle, estudos sobre o funcionamento da memória são sempre bem-vindos.
Hoje já sabemos, por exemplo, que a acetilcolina é o neurotransmissor (pelo menos o principal) responsável pelas evocações de lembranças. Com base nessa informação os pesquisadores estão desenvolvendo drogas que retardem os efeitos daninhos do Alzheimer no cérebro dos pacientes.
Mas apesar de fascinante não é sobre esse aspecto da memória que quero falar. Um grande estudioso do assunto, o psicólogo inglês *F.C.Bartlett (falecido em 1969), escreveu o livro Remembering (Recordando). Fruto de suas extensivas pesquisas de campo, é ainda hoje um clássico do assunto, ele propõe que a nossa memória de longo prazo é dinâmica, um processo construtivo.
Isso quer dizer exatamente que ao recordarmos algum evento antigo estamos na verdade reescrevendo-o em alguma extensão. Seria uma construção análoga ao ditado de "quem conta um conto aumenta um ponto", só que aumentando ou diminuindo sobre um fato original. Ele continua dizendo que quanto mais vezes evocarmos uma série de recordações mais distantes do original real, as últimas versões lá estarão.
Para concluir ele diz que na verdade cada vez que evocamos a memória de um evento original, estamos de fato evocando a memória da nossa última recordação, já com seus acréscimos e censuras, editada convenientemente pelo nosso filtro subjetivo. Isso faria com que nos sentíssemos mais familiarizados com a lembrança ao mesmo tempo em que esta se distancia do evento real original. Por isso falamos: "Ah no meu tempo tudo era melhor" ou "Ah, que saudades da minha juventude", ou ainda, "Aquele lugar é que era bom de se morar". Se pedirmos a pessoa para justificar a sua afirmação ela o fará de forma convincente…convincentemente editada.
Há muito tempo o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero disse que não sabia que estava sendo gravado: "O que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde."
Segundo Bartlett, a nossa memória de longo prazo funciona exatamente assim. Se estivermos vivendo uma relação boa e positiva, vamos lembrar do ex ou da ex mais de seus defeitos do que de suas qualidades. Mas se ao contrário estivermos vivendo uma relação ruim, vamos evocar as antigas sempre em suas faces mais luminosas, mais as qualidades que os defeitos.
Não sei se existe um estudo de sanidade mental usando esse conhecimento como parâmetro. Se não existe é um desperdício. Explico: se as conclusões de Sir Bartlett estão corretas, quanto mais uma pessoa evoca memórias antigas, mais essas memórias representarão uma visão distorcida dos fatos originais.
Sendo assim, pessoas que vivem evocando memórias antigas, têm mais chances de distorcer mais os fatos originais. Como um dos principais acessos aos bancos de memória são as sensações e emoções, estas também seriam algemadas às memórias num processo de mão dupla – usamos o gatilho das sensações e das emoções para trazer de volta à memória, mas a memória também traz junto sua carga de sensações e emoções.
Quem sabe então não poderíamos medir o grau de desvio da sanidade mental de um indivíduo pelo grau de deformação (edição) de suas memórias originais? Conheço pessoas que são "famosas" em seus círculos por suas leituras muito pessoais de fatos e acontecimentos que ocorreram no seu passado (que envolvem outras pessoas que discordam dessa visão).
Quanto mais elas evocam esses fatos mais convencidas ficam de estarem certas (o que Bartlett constatou), e a última recordação vai alimentar a próxima.
Assim talvez quanto mais mentalmente perturbado for a pessoa, mais ela se apegará ao passado e mais ela promoverá uma distorção (conveniente) de fatos e acontecimentos desse passado. As emoções-gatilho estarão sempre presentes e serão reforçadas toda vez que a gaveta se abrir com a lembrança (que ela acredita ser original, mas que é editada).
Na maioria dos neuróticos essas memórias editadas serviriam para dar sentido a sua situação, para se explicar, justificar a sua vida. Muitas vezes a memória é preservada mais ou menos original, mas o contexto em que ela é evocada ou sua utilização pode ser deformada.
Meu pai repetia muitas histórias de "seu tempo". Ao longo da sua e da minha vida ouvi centenas talvez milhares de vezes as mesmas histórias, que eram relatadas com uma fidelidade impressionante. Mas recortadas do contexto original da sua vida de então, elas tinham outros usos (para os novatos) e podiam dar uma idéia completamente equivocada de quem teria sido ele ou a vida dele naqueles primórdios.
Mas as histórias fielmente preservadas eram as "heróicas", com forte positividade. Quando chegávamos nas histórias de fracassos, estas sim eram distorcidas, editadas para protegê-lo das emoções negativas que as acompanhavam. O grau de distorção era tão flagrante que algumas pessoas contemporâneas dos eventos narrados chegavam a abaixar a cabeça ou morder os lábios numa atitude natural de consternação.
O mais interessante é que esse tipo de neurose de fixação, produz situações repetidas onde as histórias tendem a se repetir de fato ou fantasiosamente na vida do indivíduo. Se tudo isso puder um dia ser comprovado, vai apenas endossar o que a sabedoria popular e filosófica já dizia: deixe o passado em paz, deixe que os mortos enterrem os mortos. Tire do calendário dois dias: ontem e amanhã pois os dois são ficcionais.
Nada contra ter boas lembranças. Ao contrário. Mas trazer todos os dias o passado (editado) para cear a mesa, é um sinal de escassa saúde mental. Viva o presente! E até prova em contrário Viva 2007!
Nota do autor: Quanto à atualidade da teoria de Bartlett, as fontes que consultei ainda o consideram "um clássico". Ao que tudo indica seus estudos tiveram um sólida base científica e ainda não apareceream outros que o refutassem (esse compêndio de Psicologia é de 1987 e tenho em mãos a segunda edição atualizada de 2004, é da Editora da Universidade Oxford, chama-se The Mind.) Embora a dinâmica da ciência seja a sua superação, no campo da Psicologia a coisa não acontece exatamente assim, veja o exemplo dos grandes mestres, Freud, Adler, Jung só para citar alguns, eles permancem ricos e vibrantes e ainda atraem debates calorosos. Agora sempre vamos ter opiniões divergentes, isso é inevitável, pois mesmo na ciência não há unanimidades.