A tese da fábrica de insetos

A tese da fábrica de insetos espelha nosso modo de proceder, somos seres simplificadores e cada um tem a sua ‘própria fábrica’

Ao aparar a grama com um cortador, em geral sou perseguido pelas galinhas que são atraídas pelos insetos que a rotação das lâminas sempre desaloja. Porém, com o tempo, elas terminaram por fazer uma generalização e me perseguem ao menor ruído de um motor ligado. Assim, ao acionar uma esmerilhadeira ou uma lixadeira, tenho que afastar as galinhas que se aproximam. Elas certamente possuem a expectativa de que com o ruído se seguirá uma dispersão de insetos – um verdadeiro bufê livre de sua perspectiva.

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Trata-se certamente de uma generalização injustificada, já que nem todo ruído de motor produzirá uma fuga de insetos de que elas poderão se alimentar. Mais do que esse equívoco, imagino que as galinhas devem pensar que o cortador de grama é um tipo de fábrica de insetos. Isso porque, onde antes nada era perceptível, depois se cria um esvoaçar de delícias voadoras ou saltitantes. Então, parece lógico que seja a máquina que cria os insetos já que do nada, nada pode surgir.

Isso parece muito mais lógico, aliás, do que postular que existam causas desconhecidas e ocultas produzindo os insetos. Certamente a ideia de que o cortador é uma fábrica de insetos é mais simples do que afirmar que ele apenas desloca uma série de formas de vida que preexistem ocultas na grama. Assim, não é necessário explicar de onde vem a diversidade de formas existentes e suas respectivas formas de vida, de alimentação, reprodução, fisiologia etc. A teoria de que o cortador de grama é uma fábrica de insetos é realmente mais simples do que dar conta de todos esses fatores e todas as perguntas que daí surgiriam.

O mecanismo é simples

O curioso é que talvez nós, seres humanos, também possamos agora mesmo estar pensando do mesmo modo. Afinal, de tudo aquilo que nos chega do mundo exterior, nós postulamos um mecanismo explicativo que torne razoável a diversidade de suas aparências. Em geral, o mecanismo é simples, embora saibamos que as aparências sejam absolutamente diversas. Se considerarmos a passagem do tempo, veremos que essas aparências são absurdamente diversificadas a ponto de se tornarem impensáveis. Afinal, se é verdade que cada folha do gramado é única, também é verdade que ela se altera o tempo todo sendo – ela apenas – uma diversidade de folhas que variam de instante a instante. E isso, em tal grau que essa folha torna-se inúmeras outras e, portanto, impensável.

Somos seres simplificadores

Parece que é para evitar a dissolução da racionalidade que simplificamos o mundo – nós e as galinhas. Não parece mesmo haver uma alternativa a esse processo de simplificação quando consideramos que pensar a diversidade bruta das coisas simplesmente nos atiraria em um abismo de diferenças do qual jamais sairíamos. Então, todos nós, humanos e não humanos, somos seres simplificadores. E isso pode ser, inclusive, uma estratégia de sobrevivência já que é da simplificação que surge um mundo pensável, sensível, existencialmente viável – sempre de nossa própria e diferente perspectiva.

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Tese da fábrica de insetos espelha nosso modo de proceder

A tese hipotética da fábrica de insetos, que poderíamos ter julgado inicialmente equivocada, agora parece não apenas razoável, mas muito próxima do modo humano de proceder. Afinal, ela consiste em uma simplificação que torna a vida das galinhas possível. Não apenas isso, mas ela também orienta um certo comportamento que facilita a obtenção de alimentos. Quando nós humanos buscamos explicações simples sobre o mundo que nos cerca, procedemos com base no mesmo princípio que as galinhas diante da fábrica de insetos: simplificamos diante do abismo e do caos originário que nos abarca e tende a nos fazer submergir.

Nós acreditamos que a fábrica de insetos é uma tese falsa, que insetos não são fabricamos pelo cortador de grama. Mas isso é só uma diferença de opinião dentro de um mesmo tipo de procedimento existencial de simplificação. Ou seja, além das diferenças que nos separam – nós das galinhas – há uma mesma lógica subjacente que nos une. E se isso nos torna mais próximos dos galináceos, certamente faz o mesmo e com maior intensidade diante dos outros seres humanos. Principalmente aqueles que acreditam em diferentes fábricas de insetos. Ao final, todos nós vivemos no interior de nossas próprias fábricas de insetos.

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie