Pandemia: como nos armar para as mais de 400 mil mortes?

É necessário nos armarmos com as qualidades da pedra: caminhos para enfrentar as mais de 400 mil mortes pela Covid-19 no Brasil

Introdução

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“Vou na mesma paisagem reduzida à sua pedra. A vida veste ainda sua mais dura pele. Só que aqui há mais homens para vencer tanta pedra, para amassar com sangue os ossos duros desta terra. E, se aqui há mais homens, esses homens melhor conhecem como obrigar o chão, com plantas que comem pedra. Há aqui homens mais homens, que em sua luta contra a pedra, sabem como se armar com as qualidades da pedra.”

(Poema: O Rio, ou a Relação da Viagem que faz o Capibaribe de sua Nascente à Cidade do Recife. João Cabral de Melo Neto. Editora Alfaguara. São Paulo: 3 de novembro de 2020).

Nosso coração, nossas emoções e nossas relações seguem uma luta e um luto decretado, acima de tudo, pelo descaso político central, com sua incapacidade de ser criticado e de “ouvir a voz da ciência”, portanto, diante dessa inconsequência e descaso federal com o cidadão brasileiro, há uma confusão de ordenamento e governança, entre ações e restrições promovidas por governos locais.

Vivemos assim, tempos terríveis, de sombria experiência humana, na qual o caos de uma pandemia mundial, é somado a um mundo esquizofrênico de ações, medos, e assombroso aumento de usos e abusos, da produzida confusão generalizada, para explorar, enganar e extorquir tantos quantos sejam alvos de malfeitores, disfarçados de “prestadores de assistência”. É o caos dentro do caos.

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O tecido social e relacional, esses que envolvem as nossas relações interpessoais cotidianas, está esgarçado e muitas vezes rompido. O adoecimento emocional, as pequenas e grandes violências relacionais, minam nossa esperança e nos põem em um cenário de absoluta perda da fé e de um horizonte de dias melhores.

O porquê do negacionismo

O “negacionismo”, fruto de mentes que preferem se proteger, como forma de sobreviver, alimentam falsos alentos e falsas esperanças, convocando a nós, incautos e enredados nesta trama de morte e engano, a desistirmos, a “sairmos do isolamento social”, a andarmos sem máscaras, a enfrentarmos o vírus, a explodirmos com o outro, porque ele nos incomoda, porque não pensa e age como desejamos etc… Ou seja, há um estímulo negacionista sobre a realidade e sua complexidade que conduz à morte física, emocional, relacional e espiritual.

Isto posto, me desafiei a propor algo, que nos livre desse imobilismo, dessa sensação de que não há nada a fazer. Precisei de mais tempo do que o habitual, para achar uma rota de escape. E a encontrei na arte, num lindo poema do imortal poeta João Cabral de Melo Neto, meu conterrâneo, que usou a arma das palavras como forma de vida e de superação das duras provas do viver.

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E tendo o sensível poema “O Rio, ou a Relação da Viagem que faz o Capibaribe de sua Nascente à Cidade do Recife”, que nos serviu de epígrafe deste texto, me proponho a refletir sobre possíveis saídas para nosso viver e nossas relações, em tempos tão duros do viver.

Aprendendo a vestir a dura pele

“A vida veste ainda sua mais dura pele…”, nos conta o poeta pernambucano, e assim me inspirei para o que vejo como uma primeira rota de superação e ressurgimento de esperanças.

Aprendi, desde muito cedo, que havia tempo para todas as coisas debaixo da terra, como me ensinaram meus pais, desde muito pequenina. Calcados nas Sagradas Escrituras Cristãs, e mais precisamente no livro de Eclesiastes capítulo 3 e versos de 1 a 8, meus pais me preparam para os ciclos da vida que comportavam permanentes paradoxos, nos quais se alternariam, sistematicamente, ao longo de todo o meu viver: alegrias e tristezas, encontros e desencontros, vida e morte, alegria e choro, tempos de ajuntar e de separar, de cozer e de rasgar, de amar e de odiar. A eles, e a essa mais que preciosa lição, minha eterna gratidão.

Esses serão, portanto, os dois ensinos para nos guiar em tempos de trevas: precisaremos nos vestir de “pele dura”, e teremos que dançar a dança das alternâncias dos tempos bons e maus.

Isso, então, nos conduzirá a um exercício que nomeio de “desenvolvimento das qualidades da pedra”.

Aprendendo a desenvolver as qualidades da pedra

Chama a atenção o foco que o poeta João Cabral de Melo Neto dá à pedra, num poema que fala de um dos principais rios que corta a cidade do Recife, o Rio Capibaribe.

Li e reli muitas vezes esse poema e a questão se aclarou nitidamente em minha mente, com a qualidade cristalina que o Rio Capibaribe, já teve, antes que fosse poluído por dejetos e resíduos da perversa ação de descuido e falta de planejamento da preservação da vida de seu leito nascedouro e de suas águas.

Claro, o rio só poderia percorrer seu trajeto, se encontrasse “duras margens”, feitas de duras pedras, que permitissem que suas águas não se espalhassem pelas imensas terras por onde passaria.

Caso não houvesse a dura ribanceira, a dura pedra que forçava o rio a seguir seu curso, não haveria vida, desde a vida aquática, à própria vida dos habitantes dos vários logradouros banhados pelo rio.

Proposta de sobrevivência

“…precisamos forçar as águas de nosso viver, o rio precisa correr, para que a nossa vida corra”

Eis agora a minha proposta de sobrevivência e enfrentamento do ciclo morte, separação, rompimentos e ódios que atravessamos: precisaremos ser mais “duros”, mais resistentes, precisamos forçar as águas de nosso viver, o rio precisa correr, para que a nossa vida corra.

Fragilização queixosa

E procurando apresentar algumas atitudes endurecedoras, proponho que diminuamos nosso sistema de “fragilização queixosa”, que nos leva a uma ação nada produtiva e que torna nossa alma e nossas relações: obesas, flácidas, cheias de gomos de celulite, pelo excesso da “gordurosa” atitude de reclamação, de queixas, de fofocas, de mal querências, estímulo de intrigas, e o mais dos “deformantes alimentos para a alma”, de inveja.

Saídos da tal “fragilização queixosa”, poderemos fazer, então, fortes exercícios de “musculação na alma”, precisamos endurecer nossa pele e músculos relacionais.  Como?  Coloquemos no nosso viver as “plantas que comem pedras”, como nos disse o poeta. Isso equivale a que: critiquemos menos, elogiemos mais, abracemos mais (os íntimos, nesse momento), ajudemos mais, sejamos mais pacientes, sejamos mais persistentes e sejamos mais prudentes.

Também como “musculação de alma”, será importante “nos escudarmos” das pessoas que aprenderam a apedrejar, além de criticar. Elas são boas arqueiras e conhecem as feridas dos que com ela se relacionam, elas alvejam e atiram, sabem, que “o outro não resistirá e tombará”.

Se, contudo, com peles endurecidas e fazendo usos de técnicas de artes marciais de autoproteção e de esquiva, com bastante flexibilidade em nossas articulações, poderemos aprender a nos escudarmos dessas pessoas, nos desviando desses ataques, já que, com peles mais endurecidas, perderemos a ingenuidade de nos apresentarmos sem defesa, diante delas  e aprenderemos, portanto, a reconhecer os nossos inimigos. Afinal, eles não fingem, nós é que fingimos não vê-los, “negamos” que eles queiram nos combalir.

E para terminar…

Ufa!!! Mais um texto, no qual experimento um forte suspiro quando chego na reta final, como deu trabalho criar, e escrever com tanta tristeza ao meu redor e em mim, mas creio ter dado conta de completá-lo.

E, diferentemente, de outras finalizações em que termino minhas reflexões com canções que sintetizam a reflexão, sou impelida a percorrer outra trilha.

Pedirei a cada leitor, leitora, que fique em silêncio, pelo tempo que puder. Sem pensar em nada, só fazendo uma respiração consciente, precisamos cessar os sons, internos e externos, para nos ouvirmos, para nos percebermos, para soltarmos as tensões que se localizam em distintas áreas de nosso corpo.

E assim, esvaziados, e respirando mais conscientes, poderemos rever, paciente e delicadamente as margens do rio de nosso viver, e que descubramos o que pode fortalecer nossas margens. Boa navegação.

Fatima Fontes, Psicóloga Clínica pela UFPE, Especialista em Psicodrama e Terapia Familiar; Mestre em Psicologia Social PUC/SP; Doutora em Serviço Social PUC/SP, com Estágio de Estudos de Doutoramento no Centre Edgar Morin, Paris, Doutora em Psicologia Social, USP. Pesquisadora do Laboratório de Psicologia Social da Religião- PsiRel USP. Professora de Pós-Graduação e Coautora e Co-organizadora de vários livros: Ex: Religiosidade e Psicoterapia, Editora Roca 2008