A liberdade funciona como uma miragem que se afasta à medida em que nos aproximamos dela? As diversas formas de marginalidade estariam mais próximas da liberdade?
Há mais ou menos uns 200 anos, um filósofo europeu analisava o seu presente e as perspectivas de futuro imediato. Para ele, a liberdade individual era uma espécie de nó que precisaríamos desatar para que o futuro adquirisse algum sentido promissor. Não somos europeus, mas não deixamos de sê-lo. Então, creio que parte do problema da liberdade individual também ainda é nosso.
Temos uma tendência natural a afirmar que somos livres. Mas quem negaria que os constrangimentos existentes, típicos da nossa maneira de viver, impedem o gozo e até a posse básica da liberdade?
Por exemplo, como podemos garantir que alguém está de posse de sua liberdade quando é cada vez mais necessário possuir recursos econômicos para usufruir dos meios necessários à sobrevivência?
Sem estabelecer uma relação de venda do trabalho, nenhum de nós pode se colocar em condições de usufruir de bens básicos. Na verdade, sem a remuneração gerada pelo trabalho, sequer podemos ir e vir. Muito menos nos alimentarmos ou repousar em um local protegido. Desse ponto de vista, a relação do trabalho parece cada vez mais uma modalidade de sacrifício realizado em função da necessidade de obter o mínimo para participar da vida humana. Sem submeter-se ao ritmo de trabalho ocidental não se pode efetivamente viver entre os homens – a menos que você seja um herdeiro rico.
Por que o trabalho se assemelha à prostituição
Não se trata apenas de trabalho, mas de adotar compulsoriamente uma certa forma de trabalho (dentre aquelas que são consideradas produtivas) e até um ritmo de esforço que seja compatível com os parâmetros exigidos. Ou seja, deve-se trabalhar em tais e tais atividades em tal ou qual ritmo para gerar tal quantidade de riqueza. Sem aceitar todas essas condições ninguém pode ser livre. O trabalho termina por se assemelhar a uma prostituição, em que se sacrifica qualquer traço de liberdade para podermos ser … livres! Essa é a ironia ou a sagacidade maligna do trabalho atualmente: só podemos ser realmente livres na marginalidade, fora do mundo social produtivo, fora da sociedade na forma em que ela se encontra.
Como isso tudo se dá no campo amoroso
Para os que acham que exagero, pensem no modo como as relações amorosas se estabelecem nessas mesmas sociedades em que se trabalha para ser livre. Qualquer um de nós, mesmos os mais feios, já ouviram a frase “eu te amo”. Porém, como saber se se trata realmente de um gesto livre de alguém diante de nossos encantos ou da mais simples manifestação de interesse. Não me refiro a pessoas interesseiras que gostariam de ter acesso à sua riqueza mesmo você sendo pouco atraente. Mas refiro à pressão exercida sobre aqueles que lidam com dificuldades de sobrevivência básica, e que para obter êxito, se lançam à captura de alguém melhor colocado na hierarquia social.
Em condições desiguais como podemos ter convicção de que se trata efetivamente de amor? Não que as pessoas sejam calculistas, insisto nisso. Mas apenas que em tais condições seus sentimentos nunca são puros, mas sempre mesclados com uma boa dose de pragmatismo. Afinal, elas nunca estão efetivamente em condições igualitárias para pode tomar decisões livres. Então é natural que tenham aprendido a mentir para si mesmas, em um grau tão primário que não compreendem e nem cogitam o que seriam seus sentimentos genuínos sem a coação financeira.
Há espaço para os ‘sentimentos genuínos’?
Nas condições atuais não faz sentido falar em sentimentos genuínos em função do predomínio absoluto dos valores econômicos – cuja adoção funciona como uma condição para a liberdade. Qualquer um que tenha lido os parágrafos acima não pode deixar de reconhecer que as diferenças de gênero – mas não apenas elas – ocupam um papel especial na luta pela conquista da liberdade.
Na verdade, toda desigualdade termina por exercer uma função de obstáculo para um conjunto de valores que priorizara a liberdade individual como um de seus motivos mais fundamentais. Então, temos sempre em mira o requisito da igualdade, enquanto a liberdade parece se afastar mais e mais para um futuro distante.
Talvez a liberdade funcione como uma miragem que se afasta à medida que cremos nos aproximar dela. Talvez ela possa ser encontrada alterando a perspectiva de quem procura. Vimos acima, como apesar dos custos existenciais que isso implica, as diversas formas de marginalidade parecem estar mais próximas da liberdade justamente por se negarem a negociar para obtê-la. Talvez a recusa ao cálculo pragmático, entre os meios e o fim da libertação, seja a coisa mais sensata a fazer diante de um mundo que nos ilude com suas promessas.