Voltar a beber após longa abstinência: e agora?

Voltar a beber após longo período de abstinência caracteriza a Síndrome de Dependência do álcool – onde se inclui o alcoolista de carreira – uma doença de difícil manejo, que pode se tornar um eterno flagelo na vida da pessoa, mas é tratável; veja as possíveis saídas para esse grave problema

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“Comecei a beber aos 17 anos de idade e bebi pesado até os 36 anos. Depois dessa idade, passei a tomar porres intensos, porém esporádicos, algumas vezes ao ano tipo 7 vezes, isso por quase duas décadas. Há 4 anos larguei por completo. Mas estou tendo de conviver com pessoas tóxicas, não aguentei a pressão e voltei a beber. Agora me encontro perdido e me sentindo sem motivação e impotente para voltar a largar… Como saio disso agora? Se vocês do Vya Estelar puderem me ajudar… Muito obrigado.”

Resposta: Você descreve um quadro bastante arrastado de ativa, consistente e pervasiva Síndrome de Dependência de Álcool. Apesar dos padrões de dependência diversos ao longo de muitos anos, como o beber pesado diário e o beber pesado episódico (dipsomania), com apenas quatro anos de interrupção, tem-se um quadro preocupante e de intrincado manejo.

Lembre-se de que o tratamento é sempre uma via de mão dupla, ou seja, o sucesso depende tanto das modalidades de tratamento aplicadas quanto da adesão do paciente às propostas terapêuticas.

Voltar a beber após longa abstinência = síndrome de dependência do álcool

Apesar das raízes genéticas, neurobiológicas, culturais, ambientais, dentre outras, a doença de curso crônico conhecida como Síndrome de Dependência de Álcool é tratável. Todavia e infelizmente, marcada por recaídas e lapsos mesmo durante praticamente todas as modalidades de tratamento existentes, a Síndrome de Dependência de Álcool pode tornar-se um eterno flagelo na vida de muitas pessoas e dos seus familiares, especialmente quando a retenção e a adesão aos manejos terapêuticos não ocorrem de maneira eficaz.

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Veja bem: a Síndrome de Dependência de Álcool é uma doença crônica; logo, o seu tratamento também deve ser prolongado. A manutenção da abstinência deve também ser acompanhada por profissionais de saúde.

Os transtornos por uso de álcool e de outras drogas (ou seja, abuso e dependência) são problemas de saúde pública, afetando aproximadamente 10% da população e resultando em altos custos econômicos para a nação. Acrescidos a isso, temos os custos imensuráveis do sofrimento para os pacientes, suas famílias e aqueles ao seu redor. Os efeitos para a saúde pública dos transtornos do uso de álcool etílico são exacerbados ainda mais pelo fato de que esses transtornos podem ser arrastados e, portanto, requerem vigilância constante por parte dos pacientes e daqueles ao seu redor, bem como intervenções repetidas e incisivas.

Em outras palavras, muitos pacientes diagnosticados com um transtorno de uso de álcool experimentarão uma trajetória caracterizada por ciclos repetidos de períodos de abstinência alternados com recaídas ou lapsos que devem envolver episódios adicionais de tratamento. Termos como “carreiras de dependência” têm sido usados para casos como o apresentado nesta pergunta.

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Para driblar a natureza crônica e arrastada dos quadros de dependência de álcool e possivelmente interromper o ciclo interminável de abstinência, recaída e tratamento, pesquisadores e clínicos estão cada vez mais desenvolvendo, implementando e avaliando intervenções de “cuidados contínuos”. Essas intervenções, que podem consistir em Grupos de Mútua Ajuda (Alcoólicos Anônimos), terapias cognitivo-comportamentais, grupos de aconselhamento permanentes ou outras abordagens, devem também ser disponíveis e procuradas pelos doentes depois do episódio inicial de tratamento para a fase ativa da doença. Seu objetivo é estabilizar a situação dos pacientes, diminuir as taxas de recaída e, assim, também reduzir as próximas “agudizações” do quadro.

Síndrome de abstinência do álcool requer cuidados contínuos

A solução parece simples; porém, existem vários estorvilhos neste percurso de “cuidados contínuos”, tais como:

a) O financiamento para o tratamento prolongado é muitas vezes parco;

b) As taxas de abandono são altas durante a fase inicial do tratamento, de modo que apenas uma minoria dos pacientes que iniciam um episódio de tratamento atingem o estágio em que podem fazer a transição para cuidados continuados. Em um estudo, apenas 50% dos pacientes que iniciaram o tratamento ambulatorial intensivo realmente completaram todo o programa de 4 semanas, e daqueles que fizeram a transição para cuidados continuados, outros 50% não completaram esse programa;

c) Muitos pacientes são ambivalentes sobre sua necessidade de tratamento e só entram em um programa de tratamento por causa de algum tipo de pressão externa (por exemplo, da família, empregadores ou sistema judicial);

d) Muitas pessoas não estão confortáveis ou satisfeitas com as opções de tratamento comumente disponíveis para o tratamento inicial e o contínuo, como terapia de grupo e) Grupos de Mútua Ajuda (Alcoólicos Anônimos).

e) Outrossim, outros pacientes podem não querer adotar a meta de abstinência total, que é a base de muitas intervenções.

Dentre os problemas apontados, um dos principais entraves durante a implementação de “cuidados contínuos” é a dificuldade na retenção dos pacientes pela duração pretendida da intervenção. Estudos, contudo, têm mostrado fatores que podem favorecer a adesão aos ditos “cuidados contínuos”:

a) Uma combinação de certas características do paciente, incluindo maior gravidade do problema, maior motivação para mudar, melhor disponibilidade de apoio social e familiar, e envolvimento em atividades pró-recuperação (como grupos religiosos, atividades esportivas, dentre outras);

b) Disponibilidade de serviços convenientes para o seguimento continuado, como, por exemplo, a existência de uma unidade de tratamento perto da casa do paciente;

c) Incentivo evidente da equipe durante a fase inicial do tratamento (por exemplo, apoio da equipe na identificação de locais que procedam aos “cuidados contínuos”).

Bom, diante deste cenário nada aprazível, o que fazer?

Tratamento para se libertar de uma carreira alcoólica é prolongado

Vários estudos têm investigado o impacto de várias estratégias para aumentar o envolvimento inicial nos “cuidados contínuos” e, consequentemente, melhorar a retenção e reduzir as possibilidades das chamadas “carreiras alcoólicas”. Esses procedimentos incluem:

a) Estratégias de gerenciamento dos casos (oferta de serviços médicos mais próximos das residências dos pacientes, fortalecimento nas estratégias motivacionais, recrudescimento nas atividades de desenvolvimento de habilidades sociais e para o trabalho etc);

b) Encaminhamento exaustivo para serviços de “cuidados contínuos” que monitoram a transição de pacientes de um nível de atenção para o próximo. Por exemplo, quando os profissionais da saúde fornecem informações extensas sobre os Grupos de Mútua Ajuda (AA) disponíveis e estabelecem contato com algum membro do grupo, os pacientes tendem a se envolver mais fortemente nestes programas. Isso também pode acontecer com outros tipos de manejo ou programas de abordagem;

c) Incentivo contínuo por meio de contatos telefônicos após a alta de um programa agudo de tratamento para incentivar os pacientes a cumprir um plano de “cuidados contínuos” acordado;

d) Inclusão de uma variedade de estratégias fáceis de implementar (orientação sobre o programa de “cuidados contínuos”, feedback sobre a assiduidade, lembretes para reforçar a assiduidade, contratos de comportamento e participação dos familiares).

Associação de duas ou mais modalidades de intervenção

Tem-se verificado que a associação de duas ou mais modalidades de intervenção demonstra melhores resultados quanto à manutenção da abstinência do que a disponibilização de apenas uma modalidade.

Alguns pacientes perguntam sobre a possibilidade da inclusão do tratamento psicofarmacológico. É sempre necessária a avaliação médica especializada sobre a presença de outros transtornos mentais e físicos que azaranzam o prognóstico com a finalidade de também os tratar medicamente.

Medicamentos para tratar o alcoolismo

Alguns medicamentos específicos são utilizados no tratamento de pessoas com dependência de álcool e de outras substâncias psicoativas.
No tratamento dos transtornos por uso de álcool, a farmacoterapia se baseia principalmente em dois medicamentos:

a) A naltrexona, que atua no sistema opioide endógeno no cérebro, torna, teoricamente, o consumo de álcool menos prazeroso em alguns indivíduos e também pode reduzir o desejo por álcool;

b) O acamprosato, que atua no sistema excitatório cerebral (Glutamatérgico), parece restabelecer o equilíbrio dos sistemas cerebrais inibitórios e excitatórios, que são interrompidos pelo álcool (infelizmente, o Acamprosato não é disponível no Brasil no corrente momento).

A maioria desses medicamentos é usada principalmente durante os estágios iniciais do tratamento (ou seja, por 8 a 12 semanas).
Alguns estudos, no entanto, também avaliaram os efeitos do tratamento prolongado com naltrexona e acamprosato, com resultados mistos.

Você deve estar em tratamento continuado com profissional da saúde especializado. Não podem existir interrupções no tratamento. Alguma forma de suporte deverá sempre ser disponível para você e procurada por você.

Não permita que esta “carreira” continue ainda mais.

Boa sorte!!!

Atenção!
Esta resposta (texto) não substitui uma consulta ou acompanhamento de um médico psiquiatra e não se caracteriza como sendo um atendimento.

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.